domingo, 25 de agosto de 2013

Compreendendo o Pensamento Correto


 

Seguindo com o nobre caminho óctuplo o segundo elemento é o pensamento correto, samma sankappo, também às vezes traduzido como reta compreensão. Em qualquer sentido se refere à postura correta, coerente com o dhamma, no modo de pensar, ou de encarar ou de compreender os fenômenos, a saber, cultivando o pensamento de generosidade, amorosidade e compaixão.

Na definição apresentada pela tradução do SN XLV.8 aparece esse pensamento em sua forma negativa, isto é, pensamento de renúncia, de não-crueldade e de não-má-vontade. O que é o pensamento de renúncia no budismo? Ao que o budista renuncia em sua forma de pensar? Nesse caso ele renuncia o que for oposto da generosidade, ele renuncia à cobiça, ele não alimenta pensamentos cobiçosos e sim os abandona.

Entenda-se por cobiça muito amplamente abrangendo inveja, ânsia, desejo ardente, ambição, ganância, mesquinhez, avareza, enfim, ele renuncia a um dos principais grilhões que o mantem prisioneiro ao sofrimento e às visões errôneas, ao lado da aversão e da ignorância. Cobiça nesse caso é o significado da palavra lobha, traduzida geralmente como cobiça ou paixão, mas seu significado mais exato seria uma sede ou ânsia insaciável, sem fim; é sinônimo de tanha, que literalmente significa sede.

Ainda sobre renúncia se costuma dizer também que o budista renuncia as ações prejudiciais do corpo da fala e da mente, mas isso convém mais a outro tópico mais a frente, em outro elemento do caminho óctuplo.

O pensamento correto se refere ainda a estar livre da má vontade, cultivando a boa vontade que pode ser desenvolvida através da amorosidade, da alegria altruísta e da equanimidade, que são três dos quatro brahmaviharas (moradas divinas) que são antídotos adequados para a hostilidade dos outros e para as tendências à raiva, ódio, irritação, aversão na própria mente.

As quatro moradas divinas são as supracitadas amorosidade (metta), que é o desejo de bem estar e felicidade para com o outro; compaixão (karuna), que é o desejo de livrar o outro do sofrimento; alegria altruísta (mudita), que é regozijo com as virtudes, alegrias e êxitos do outro; e equanimidade (upekkha), a atitude de imparcialidade desapegada com relação aos seres (não é apatia ou indiferença, mas uma atitude que alé de conter as anteriores é justa). A compaixão é o próximo elemento a que compõe o pensamento correto, é o pensamento que afasta a crueldade, é o pensamento de não crueldade. Podemos considerar a compaixão como um antidoto ao pensamento da incorreto da crueldade.

Além disso as quatro moradas divinas fazer parte do conjunto dos dez parami (também paramita) que são as dez perfeição de caráter. Um grupo de qualidades desenvolvidas, a saber, generosidade (dana), virtude (sila), renúncia (nekkhamma), sabedoria (pañña), energia (viriya), paciência (khanti), honestidade (sacca), determinação (adhitthana), amor bondade (metta), e equanimidade (upekkha). Essa discussão convem mais a outro tópico mais adiante.

Os pensamentos opostos do pensamento correto, se prestarmos atenção, ocupam boa parte de nossos pensamentos no dia a dia, nos tiram a atenção, tiram nossa energia, nossa alegira e nos estressam, obstruindo nossa visão e nossas capacidades. O pensamento correto, quando bem aplicado,é o remédio que vai corrigindo gradativamente todos esses problemasenos conduzindo gradualmente aos próximos elementos do nobre caminho óctuplo, fala correta e ação correta. Quando cada vez mais podemos ver que a palavra “correta” tem também o significado de precisa.

 

Pensamento Correto

Samma Sankappo

Pensamento Correto é o segundo dos oito elementos que compõem o Nobre Caminho Óctuplo e pertence ao grupo da sabedoria

 





 

Definição

"E o que é pensamento correto? O pensamento [1] da renúncia, [2] de estar livre da má vontade e [3] de estar livre da crueldade. A isto se chama pensamento correto."






Cultivando pensamentos hábeis

" E como alguém se torna puro de três formas pela ação mental? [1] É o caso em que alguém não é cobiçoso. Ele não cobiça as posses dos outros, pensando, 'Ah, que aquilo que pertence aos outros seja meu!' [2] A sua mente não possui má vontade e as suas intenções estão isentas de raiva: 'Que esses seres possam estar livres da inimizade, aflição e ansiedade! Que eles vivam felizes!’ [3] Ele tem entendimento correto e não vê as coisas de forma distorcida: ‘Existe aquilo que é dado e o que é oferecido e o que é sacrificado; existe fruto e resultado de boas e más ações; existe este mundo e o outro mundo; existe a mãe e o pai; existem seres que renascem espontaneamente; existem no mundo brâmanes e contemplativos bons e virtuosos que, após terem conhecido e compreendido diretamente por eles mesmos, proclamam este mundo e o próximo.’






A sua relação com os outros elementos do caminho

" E como é que o entendimento correto vem primeiro? A pessoa compreende pensamento incorreto como pensamento incorreto e pensamento correto como pensamento correto. E o que é pensamento incorreto? [1] O pensamento de sensualidade, [2] o pensamento de má vontade, [3] o pensamento de crueldade: isso é pensamento incorreto...

"A pessoa [1] faz o esforço para abandonar o pensamento incorreto e [2] penetrar no pensamento correto: Esse é o esforço correto da pessoa. A pessoa [1] com atenção plena abandona o pensamento incorreto e [2] penetra e permanece no pensamento correto: Essa é a atenção plena correta da pessoa. Dessa forma essas três qualidades - entendimento correto, pensamento correto e atenção plena correta – giram em torno do entendimento correto."






Dividindo o pensamento em duas categorias

“Bhikkhus, antes da minha iluminação, quando eu ainda era apenas um Bodisatva não iluminado, eu pensei: ‘E se eu dividisse os meus pensamentos em duas categorias.’ Então coloquei de um lado os pensamentos de desejo sensual, pensamentos de má vontade e pensamentos de crueldade; e coloquei do outro lado os pensamentos de renúncia, pensamentos de não má vontade e pensamentos de não crueldade.

“Enquanto assim permanecia, diligente, ardente e decidido, um pensamento de desejo sensual surgiu em mim. Eu compreendi desta forma: ‘Este pensamento de desejo sensual surgiu em mim. Isso conduz à minha própria aflição, à aflição dos outros e à aflição de ambos; isso obstrui a sabedoria, causa dificuldades, e afasta de Nibbana.’ Ao pensar: ‘Isto conduz à minha própria aflição,’ aquilo arrefeceu em mim; ao pensar: ‘Isto conduz à aflição dos outros,’ aquilo arrefeceu em mim; ao pensar: ‘Isto conduz à aflição de ambos,’ aquilo arrefeceu em mim; ao pensar: ‘Isso obstrui a visão, causa dificuldades, e afasta de Nibbana,’ aquilo arrefeceu em mim. Sempre que um desejo sensual surgia em mim, eu o abandonava, o removia, o eliminava.

“Enquanto assim permanecia, diligente, ardente e decidido, um pensamento de má vontade surgiu em mim…um pensamento de crueldade surgiu em mim. Eu compreendi desta forma: ‘Este pensamento de crueldade surgiu em mim. Isso conduz à minha própria aflição, à aflição dos outros e à aflição de ambos; isso obstrui a sabedoria, causa dificuldades, e afasta de Nibbana.’ Ao pensar: ‘Isto conduz à minha própria aflição,’ aquilo arrefeceu em mim; ao pensar: ‘Isto conduz à aflição dos outros,’ aquilo arrefeceu em mim; ao pensar: ‘Isto conduz à aflição de ambos,’ aquilo arrefeceu em mim; ao pensar: ‘Isso obstrui a visão, causa dificuldades, e afasta de Nibbana,’ aquilo arrefeceu em mim. Sempre que um pensamento de crueldade surgia em mim, eu o abandonava, o removia, o eliminava.

Bhikkhus, qualquer coisa na qual um bhikkhu pense e pondere com freqüência, essa passará a ser a tendência da sua mente. Se ele pensar e ponderar com frequência pensamentos de desejo sensual, ele terá abandonado o pensamento da renúncia para cultivar o pensamento do desejo sensual, e então a sua mente irá tender para os pensamentos desejo sensual. Se ele pensar e ponderar com frequência pensamentos de má vontade…pensamentos de crueldade, ele terá abandonado o pensamento da não crueldade para cultivar o pensamento da crueldade, e então a sua mente irá tender para os pensamentos de crueldade.

-- MN 19





Refletindo sobre as ações que praticamos

“Rahula, [I] quando você [1] quiser praticar uma ação com o corpo, você deveria refletir a respeito: [a] 'Esta ação corporal que quero praticar - conduzirá à minha própria aflição, à aflição de outros, ou ambos? [b] É uma ação corporal sem habilidade, com consequências dolorosas, resultados dolorosos?' Se, refletindo, você sabe que conduzirá à sua própria aflição, à aflição de outros, ou ambos; será uma ação sem habilidade com consequências dolorosas, resultados dolorosos, então qualquer ação corporal desse tipo é totalmente inadequada. Porém se refletindo, você sabe que [c] não causará a própria aflição, a de outros, ou de ambos, e que [d] será uma ação habilidosa com felizes consequências, felizes resultados, então qualquer ação corporal desse tipo é adequada.

"Também, Rahula, [2] enquanto você estiver praticando uma ação com o corpo, você deveria refletir a seu respeito: 'Esta ação corporal que estou praticando - conduzirá à minha própria aflição, à aflição de outros, ou ambos? É uma ação corporal sem habilidade, com consequências dolorosas, resultados dolorosos?' Se, refletindo, você sabe que conduzirá à sua própria aflição, à aflição de outros, ou ambos...você deveria desistir dela. Porém se refletindo você sabe que não é...você pode continuar com a ação corporal.

“Também, Rahula, [3] tendo praticado uma ação corporal, você deveria refletir a respeito ... se, refletindo, você sabe que conduziu à sua própria aflição, à aflição de outros, ou ambos; foi uma ação sem habilidade com consequências dolorosas, resultados dolorosos, então você deveria confessá-la, revelá-la, abri-la para o Mestre ou um sábio companheiro na vida santa. Tendo confessado...você deve exercer contenção no futuro.Porém se refletindo você sabe que não conduziu à aflição...foi um ação corporal habilidosa com conseqüências felizes, resultados felizes, então você deveria se sentir mentalmente renovado e contente, treinando dia e noite nos estados benéficos.

...[da mesma forma para ações [II] verbais e [III] mentais]...

" Portanto, Rahula, você deve treinar dessa forma: 'Eu purificarei minhas [I] ações corporais, [II] ações verbais e [III] ações mentais através da repetida reflexão."

-- MN 61





Amor bondade

"Aqui, bhikkhus, uma certa pessoa permanece com o coração [a] pleno de amor bondade permeando o primeiro quadrante com a mente imbuída de amor bondade, da mesma forma o segundo, da mesma forma o terceiro, da mesma forma o quarto; assim acima, abaixo, em volta e em todos os lugares, para todos bem como para si mesma, ela permanece permeando o mundo todo com a mente imbuída de amor bondade, abundante, transcendente, imensurável, [b] sem hostilidade e [c] sem má vontade."






Para si mesmo, para os outros

De duas pessoas que praticam o Dhamma de acordo com o Dhamma, tendo noção do Dhamma, tendo noção do significado – uma pratica tanto para o seu benefício como o benefício dos outros, e outra pratica para o seu próprio benefício porém não para o benefício dos outros - aquela que pratica para o seu próprio benefício porém não para o benefício dos outros deve ser criticada por isso, aquela que pratica tanto para o seu benefício como para o benefício dos outros deve ser elogiada por isso.”






 

Copyright © 2000 - 2013, Acesso ao Insight - Michael Beisert: editor, Flávio Maia: designer.

 

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Compreender Completamente A Raiz de Todas as Coisas


Nossa experiência é condicionada por vários fatores. Além das limitações dos sentidos, do corpo e da própria mente, entre outras limitações mais, há a probabilidade restrita também pelo fator ambiental; tamanho, tempo, subjetividade, são também fatores que limitam nossa experiência.


Diante disso, embora a empiria seja um fator mais seguro na constituição do conhecimento, ela também é condicionada por muitos fatores e provavelmente por outros mais ainda desconhecidos. A razão por si só ou mesmo apoiada na experiência também não vai muito além desses limites e também possui seus próprios limites.


O que Buda descobriu quanto a esse ponto tão delicado do conhecimento, fundamentalmente, foi que nossa visão está condicionada pelo nosso modo ver e por nossas experiências passadas, mas também, além disso, baseada em pontos de vista preconcebidos e completamente errôneos. Essa descoberta por outro lado identifica os pontos errôneos que são importantes obstruções do modo de observar e ver com clareza.


Sabendo quais são esses pontos especificamente e combatendo-os sistematicamente será bem mais eficaz do que ficar tratando vários outros pontos de vistas secundários que só irão esgotar nossa energia. Assim como o cientista para observar com relativa imparcialidade o objeto de seu conhecimento sem se


O budismo não é simplesmente uma prática única ou um sistema conceitual em que se pode simplesmente acreditar, mas composto de várias práticas que levarão gradualmente o praticante a chegar por si mesmos às mesmas conclusões. Neste caso trata-se de aplicar, nos diferentes níveis, o modo de ver prescrito para alcançar a experiência e os estados descritos, que são os únicos capazes de libertar de toda dúvida, e de toda escravidão, isto é, de toda limitação, de toda ilusão, de toda angustia e sofrimento.


Imprescindível, antes de tudo isso, limpar a visão, despi-la das preconcepções, abrir mão das convicções errôneas, para começar a ver por si mesmo e não simplesmente crer nesta ou naquela forma de conhecimento e no que ela propõe. Um método prático de fazer isso e de lançar a visão sobre qualquer coisa ou fenômeno é o que esse sutta ensina.


Então chegamos ao ponto diferencial entre os métodos que pretendem conhecer completamente algo. Neste não se trata de alguma forma relativista nem utilitarista, mas daquela que alcança a realidade última e nesse processo onde a desobstrução da visão do pesquisador está comprometida, ele mesmo chega até ela e só chega livrando a si mesmo de todos os enganos e limitações que “coincidentemente” são os mesmo que o prejudicam e o levam ao sofrimento e ao estresse.


Talvez por ser um caminho assim tão vantajoso é que o budismo seja até hoje uma das religiões que mais tem adeptos em todo mundo e sem ir em busca desses, sem proselitismos.


 


A Raiz de Todas as Coisas


Texto extraído do Majjhima Nikaya 1, Mulapariyaya Sutta


Traduzido do Pali para o inglês originalmente por Bhikkhu Nanamoli, editado e revisado por Bhikkhu Boddhi, traduzido do inglês por Michael Beizert e condensado por Antonio Gonzaga

 

Somente para distribuição gratuita como um presente do Dhamma




Assim ouvi. [1] Em certa ocasião, o Abençoado estava vivendo em Ukkattha, no Bosque de  Subhaga ao pé de uma árvore sala real. Lá ele se dirigiu aos monges desta forma: “Bhikkhus [2], eu vou ensinar a raiz de todas as coisas. [3

“Uma pessoa comum sem instrução que não respeita os nobres, [4] que não é proficiente nem disciplinada no ensinamento deles, que não respeita os homens verdadeiros, que não é proficiente nem disciplinada no ensinamento deles, (1) percebe a terra como terra. [5] Tendo percebido a terra como terra, ele (2) concebe [a si mesmo como] terra, (3) ele concebe [a si mesmo] na terra, (4) ele concebe [a si mesmo separado] da terra, (5) ele concebe a terra como ‘minha’, (6) ele se delicia com a terra. [6] Porque isso? Porque ele não a compreendeu completamente, eu digo. [7] [O mesmo faz com] a água, o fogo, o ar, os seres [8], os devas [9], Pajapati[10], Brahma[11], os devas que Emanam Radiância[12], os devas da Glória Refulgente[13], os devas do Grande Fruto[14], o Senhor Supremo[15], a base do espaço infinito[16], a base da consciência infinita, a base do nada, a base da nem percepção, nem não percepção, o visto[17], o ouvido, o sentido, o conscientizado, a unidade[18], a diversidade,  o todo[19], Nibbana[20]. Porque isso? Porque ele não o compreendeu completamente, eu digo.

        “Bhikkhus, um bhikkhu que se encontra no treinamento superior, [21] cuja mente ainda não alcançou o objetivo, e que ainda aspira pela segurança suprema contra o cativeiro, conhece diretamente a terra como terra. [22] Conhecendo diretamente a terra como terra, ele não deve conceber [a si mesmo como] terra, ele não deve conceber [a si mesmo] na terra, ele não deve conceber [a si mesmo separado] da terra, ele não deve conceber a terra como ‘meu,’ ele não deve se deliciar com a terra. Porque isso? Para que ele possa compreendê-la completamente, eu digo.[23] [Do mesmo modo ele deve proceder com tudo até Nibbana]. Porque isso? Para que ele possa compreendê-lo completamente, eu digo.

“Bhikkhus, um bhikkhu que é um arahant com as impurezas destruídas, que viveu a vida santa, fez o que devia ser feito, depôs o fardo, alcançou o verdadeiro objetivo, destruiu os grilhões da existência e está completamente libertado através do conhecimento supremo, [24] conhece diretamente a terra como terra. Conhecendo diretamente a terra como terra, ele não concebe [a si mesmo como] terra, ele não concebe [a si mesmo] na terra, ele não concebe [a si mesmo separado] da terra, ele não concebe a terra como ‘meu,’ ele não se delicia com a terra. Porque isso?  Porque ele a compreendeu completamente, eu digo. [25] [Do mesmo modo ele procede com tudo até Nibbana] Porque isso?  Porque ele o compreendeu completamente, eu digo. Porque ele está livre da cobiça através da destruição da cobiça. [26] Porque ele está livre da raiva através da destruição da raiva. Porque ele está livre da delusão através da destruição da delusão.

“Bhikkhus, o Tathagata,[27] digno e perfeitamente iluminado, [procede do mesmo modo com tudo até Nibbana]. Porque isso?  Porque o Tathagata compreendeu isso completamente até o fim, eu digo. [28]  Porque o Tathagata compreendeu isso completamente até o fim, eu digo. Porque ele compreendeu que o deleite é a raiz do sofrimento, e que com o ser/existir [como condição] há o nascimento, e que para qualquer um que veio a ser há o envelhecimento e morte. [29] Portanto, bhikkhus, através da completa destruição, desaparecimento, cessação, abandono e renúncia aos desejos, o Tathagata despertou para a suprema perfeita iluminação, eu digo. [30]” 

Isso foi o que disse o Abençoado. Mas aqueles bhikkhus não se deleitaram com as palavras do Abençoado.[31]




 

Abreviações:

MA      Majjhima Nikaya Atthakatha


MT      Majjhima Nikaya Tika


 

Notas:

[1] Para um tratamento mais abrangente deste importante e difícil sutta veja a publicação,  Discourse on the Root of Existence, Bhukkhu Boddhi. Essa obra contém além da tradução do sutta em Inglês, um detalhado estudo analítico da sua importância filosófica com copiosos extratos dos comentários.

[2] MA explica que o Buda discursou este sutta para dissipar a presunção que havia surgido em quinhentos bhikkhus por conta da sua erudição e maestria intelectual nos ensinamentos do Buda. Esses bhikkhus haviam sido brâmanes educados na literatura Védica e as expressões crípticas empregadas pelo Buda podem muito bem terem sido usadas com a intenção de questionar as idéias bramanistas às quais eles ainda estavam apegados.

 [3] Sabbadhammamulapariyaya. MT explica que a palavra “todas”, (sabba), é aqui empregada com o sentido limitado de “tudo o que diz respeito à identidade”, (sakkayasabba), isto é, com referência a todos os fenômenos, (dhamma), compreendidos dentro dos cinco agregados influenciados pelo apego (veja o MN 28.4). Os estados supramundanos – os caminhos, frutos e Nibbana – estão excluídos. A “raiz de todas as coisas” – que é a condição especial que mantém a continuidade do processo de repetidas existências – é explicado por MT como o desejo, a presunção e as idéias (que são as fontes subjacentes da “concepção”), e estas por sua vez  são reforçadas pela ignorância, sugerida neste sutta com a frase “ele não compreendeu isso completamente.”

 [4] A “pessoa comum sem instrução”, (assutava puthujjana), é a pessoa comum mundana, que não possui nem conhecimento e tampouco realização espiritual no Dhamma dos nobres, e se permite ser dominada pela multidão de contaminações e entendimentos incorretos.

[5] Pathavim pathavito sanjanati. Embora perceber a “terra como terra” parece sugerir ver o objeto tal como este realmente é, que é o objetivo da meditação Budista de insight, o contexto deixa claro que a percepção da pessoa comum de “terra como terra” já introduz uma ligeira distorção do objeto, uma distorção que  será ampliada para a completa má interpretação quando o processo cognitivo entrar na fase da “concepção”. MA explica que a pessoa comum se apega à expressão convencional “é terra,” e aplicando-a ao objeto, ela o percebe através de uma “distorção da percepção”, (saññavipallasa). Esta última é uma expressão técnica explicada como percepção do impermanente como permanente, do doloroso como prazeroso, daquilo que não é o eu como eu e daquilo que é feio como belo (AN4:49).

 [6] O verbo em Pali “conceber”, (maññati), da raiz man, “pensar”, é freqüentemente usado nos suttas em Pali com o significado de pensamento distorcido – pensamento que atribui ao objeto características e significado derivados não do objeto em si, mas da própria imaginação subjetiva. A distorção cognitiva introduzida pela concepção consiste, em resumo, na intrusão da perspectiva egocêntrica na experiência que já está ligeiramente distorcida pela percepção espontânea. De acordo com os comentários, a atividade da concepção é governada por três contaminações que explicam as distintas formas em que ela se manifesta – desejo, (tanha), presunção, (mana), e idéias, (ditthi). MA parafraseia este trecho assim: “Tendo percebido terra com a percepção distorcida, a pessoa comum em seguida a concebe – fabrica ou discrimina – através das tendências para as proliferações mentais, (papañca), do desejo, presunção e idéias, que são chamadas ‘concepções’ ... Ele  apreende terra de modo diverso [da realidade].”

 [7] MA afirma que aquele que compreende terra completamente assim o faz através de três tipos de compreensão completa: a compreensão completa através do conhecido, (natapariñña) – a definição do elemento terra através da sua singular característica, função, manifestação e causa próxima; compreensão completa através da investigação, (tiranapariñña) – a contemplação do elemento terra por meio das três características gerais da impermanência, sofrimento e não-eu; e a compreensão completa do abandono, (pahanapariñña) – o abandono do desejo e cobiça pelo elemento terra através do supremo caminho (do arahant).

[8] Bhata. MA diz que “seres” neste caso significam apenas os seres vivos abaixo do paraíso dos Quatro Grandes Reis, o mais baixo paraíso da esfera sensual; os seres dos planos superiores estão incluídos nos termos que vêm a seguir. MA exemplifica a aplicação dos três tipos de concepção a esta situação da seguinte forma: Quando uma pessoa se torna apegada aos seres como resultado da visão, audição, etc., ou deseja o renascimento numa certa categoria de seres, essa é a concepção devido ao desejo. Quando a pessoa classifica a si mesma, como superior, igual ou inferior aos outros, essa é a concepção devido à presunção. E quando ela pensa, “Os seres são permanentes, estáveis, eternos, etc.”, essa é a concepção devido às idéias.

 [9] MA: A referência é feita aos devas dos seis paraísos da esfera sensual, exceto Mara e a sua comitiva no paraíso dos devas que exercem poder sobre a criação dos outros. Veja o relato da cosmologia Budista na Introdução ao Majjhima Nikaya.

 [10] Pajapati, “senhor da criação” é o nome dado nos Vedas a Indra, Agni, etc., como a mais elevada das divindades Védicas. Mas de acordo com MA, Pajapati neste caso é um nome para Mara porque ele é o regente desta “geração” (paja) composta de seres vivos.

[11] Brahma neste caso é Mahabrahma, a primeira divindade que nasce no início de um novo ciclo cósmico e cujo tempo de vida dura por todo o ciclo. Os Ministros de Brahma e a Assembléia de Brahma – as outras divindades cuja posição é determinada pela realização do primeiro jhana – também estão incluídos.

[12] MA: Ao mencionar estes, todos os seres que ocupam os mundos correspondentes ao segundo jhana – os devas da Radiância Limitada e os Devas da Radiância Imensurável – devem ser incluídos pois todos estes ocupam o mesmo nível.

[13] MA: Ao mencionar estes, todos os seres que ocupam os mundos correspondentes ao terceiro jhana – os devas da Glória Limitada e os Devas da Glória Imensurável – devem ser incluídos.

[14] Estas são as divindades que ocupam os mundos correspondentes ao quarto jhana.

[15] Abhibha. MA diz que este termo é uma designação para o mundo não perceptivo, assim chamado porque ele conquista, (abhibhavati), os quatro agregados imateriais. Essa identificação soa artificial especialmente por que a palavra abhibha é um nome masculino singular. No MN 49.5 a palavra aparece como Baka, a reivindicação de Brahma da hegemonia teocrática, no entanto, MA rejeita a identificação de Abhibha com Brahma neste caso por ser uma redundância.

 [16] Esta e as próximas três seções tratam da concepção relacionada com os quatro mundos imateriais da existência – as contrapartes cosmológicas das quatro realizações meditativas imateriais (jhanas imateriais). No verso 18 a divisão da concepção por meio dos planos de existência está completa.

 [17] Nestas quatro seções os fenômenos que compreendem a identidade são considerados como objetos da percepção classificados nas quatro categorias do visto, ouvido, sentido e conscientizado. Neste caso, sentido, (muta), significa as experiências do olfato, paladar e toque, e conscientizado, (viññata), as experiências de introspecção, pensamento abstrato e imaginação. Os objetos da percepção são “concebidos” quando percebidos como “meu,” “eu” ou “ego” ou de formas que geram o desejo, presunção e idéias.

[18] Nesta seção e na seguinte, os fenômenos que compreendem a identidade são tratados de duas formas -  unidade e diversidade. A ênfase na unidade, (ekatta), MA nos informa, é característica daquele que alcança os jhanas, nos quais a mente ocorre de modo único num único objeto. A ênfase na diversidade, (nanatta), prevalece para aqueles que não alcançaram os jhanas faltando-lhes a impressionante experiência unificadora dos jhanas. As concepções que enfatizam a diversidade ganham expressão nas filosofias do pluralismo, aquelas que enfatizam a unidade são típicas das filosofias monísticas.

 [19] Nesta seção todos os fenômenos da identidade são reunidos e mostrados de forma única. Essa idéia de totalidade pode constituir a base para as filosofias to tipo panteísta ou monística, dependendo da relação postulada entre o eu e o todo.

 [20] MA entende que “Nibbana” neste caso se refere aos cinco tipos de “Nibbana aqui e agora” incluídos dentre os sessenta e dois tipos de entendimento incorreto explicados no Brahmajala Sutta (DN 1.3.19-25), isto é, Nibbana identificado com o gozo pleno dos prazeres sensuais ou com os quatro jhanas. Desfrutando desse estado, ou ansiando por ele, ele o concebe com base no desejo. Orgulhando-se por tê-lo alcançado, ele o concebe com base na presunção. Considerando que esse Nibbana imaginário é permanente, etc., ele o concebe com base em idéias.

[21] O sekha, o discípulo no treinamento superior, é aquele que alcançou algum dos três níveis inferiores de iluminação – que entrou na correnteza, que retorna uma vez, que não retorna – mas que ainda precisa treinar mais para alcançar o objetivo último, o estado de arahant, a suprema segurança contra o cativeiro. O MN 53 explica o treinamento que ele deve seguir. O arahant algumas vezes é descrito como asekha, aquele que está além do treinamento, no sentido de que ele completou o treinamento do Nobre Caminho Óctuplo.

 [22] Deve ser observado que, enquanto da pessoa comum se diz que ela percebe cada uma dessas bases, daquele no treinamento superior se diz que ele as conhece diretamente, (abhijanati). MA explica que ele as conhece com o conhecimento diferenciado, as conhece de acordo com a sua própria natureza como impermanentes, insatisfatórias e não-eu.

 [23] O discípulo no treinamento superior é instado pelo Buda a se abster da concepção e do deleite porque as inclinações por esses processos mentais ainda permanecem dentro dele. Com a realização do estado de entrar na correnteza, ele erradicou o grilhão da idéia da existência de um eu, e portanto será incapaz de conceber com base no entendimento incorreto. Mas as contaminações do desejo e da presunção apenas são erradicadas com o caminho do arahant, e dessa forma o sekha permanece vulnerável às concepções que possam se originar destas. Enquanto o conhecimento direto, (abhiñña), pertence à esfera tanto do sekha como do arahant, a completa compreensão, (pariñña), é da esfera exclusiva do arahant, visto que envolve o completo abandono de todas as impurezas.

 [24] Esta é a descrição padrão de um arahant encontrada em muitos suttas.

 [25] Quando a ignorância foi abolida através da realização da compreensão completa, as inclinações mais sutis para o desejo e para a presunção também são erradicadas. Assim, o arahant não mais se ocupa com a concepção e o deleite.

 [26] Esta seção e as duas seguintes são incluídas para mostrar que o arahant não concebe, não só porque ele compreendeu completamente o objeto, mas porque ele erradicou as três raízes prejudiciais – cobiça (ou desejo), raiva e delusão. A frase “livre da cobiça através da destruição da cobiça” é empregada para enfatizar que o arahant não está apenas temporariamente sem cobiça, mas que ele destruiu a cobiça no seu nível mais fundamental. O mesmo se aplica à raiva e delusão.

 [27] Com relação a esta palavra, que é o epíteto que o Buda usava com mais freqüência ao referir a si próprio, veja a Introdução ao Majjhima Nikaya.

 [28] Pariññatantam tathagatassa. MA explica: compreendeu completamente até a conclusão, compreendeu completamente até o limite, compreendeu completamente sem restar nada. Isto explica que enquanto os Budas e os discípulos arahants se assemelham no abandono de todas as impurezas, há, no entanto, uma distinção na abrangência da sua completa compreensão: enquanto os discípulos podem alcançar Nibbana depois de compreenderem com o insight apenas um número limitado de formações, os Budas compreendem completamente todas as formações sem exceção.

 [29] Esta sentença proporciona um enunciado altamente comprimido da fórmula da origem dependente, (paticca samuppada), em geral explicada com doze fatores (tal qual no MN 38). Conforme interpretado no MA, “deleite” é o desejo da vida passada que resultou no “sofrimento” dos cinco agregados da vida presente, “ser/existir” é o aspecto determinativo de kamma na vida presente, que causará o futuro nascimento seguido de envelhecimento e morte. Este trecho mostra que a causa da eliminação da concepção no Buda foi a compreensão da origem dependente na noite da sua iluminação. A menção do “deleite”, (nandi), como a raiz do sofrimento, estabelece uma conexão com o título do sutta; além disso, no enunciado anterior, em que a pessoa comum se delicia com a terra, etc., mostra que o sofrimento é a conseqüência última do deleite.

 [30] MA explica a seqüência de idéias da seguinte forma: O Tathagata não concebe a terra e não se delicia com a terra porque ele compreendeu que o deleite é a raiz do sofrimento. Além disso, por ter compreendido a origem dependente, ele abandonou por completo o desejo, aqui chamado de “deleite” e despertou para a suprema perfeita iluminação. Como resultado ele não concebe a terra ou se delicia com a terra.

 [31] Os bhikkhus não se deleitaram com as palavras do Buda, aparentemente porque o discurso acabou atingindo fundo os Brâmanes no seu orgulho e talvez nas suas idéias brâmanes residuais. Mais tarde, relata MA, quando o orgulho deles havia diminuído, o Buda explicou para esses mesmos bhikkhus o Gotamaka Sutta (AN 3:12) durante o qual todos alcançaram o estado de arahant.