Payasi Sutta
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gratuita
1. Assim ouvi. Em certa ocasião,
o Venerável Kumara-Kassapa [1]
estava perambulando pela região de Kosala, com uma grande Sangha de bhikkhus,
com quinhentos bhikkhus, e ele acabou chegando numa cidade denominada Setavya.
Ele ficou ao norte de Setavya na Floresta de Simsapa. [2] Agora, naquela ocasião,
o Príncipe Payasi vivia em Setavya, uma propriedade real com muitos habitantes,
rica em pastagens, árvores, rios e grãos, uma concessão real, uma doação
sagrada que lhe havia sido dada pelo rei Pasenadi de Kosala.
2. Uma idéia perniciosa havia
surgido na mente do Príncipe Payasi: “Não existe outro mundo, não há seres que
renascem espontaneamente, não existe fruto ou resultado de ações boas ou más.”
[3] E ao mesmo tempo, os
brâmanes chefes de família de Setavya ouviram: “O contemplativo Kumara-Kassapa,
um discípulo do contemplativo Gotama, estava perambulando pela região de
Kosala, com uma grande Sangha de bhikkhus, com quinhentos bhikkhus; ele chegou
a Setavya e está ao norte de Setavya na Floresta de Simsapa; e acerca desse
venerável Kassapa existe essa boa reputação: ‘Ele é estudado, experiente,
sábio, bem informado, um excelente orador, capaz de dar boas respostas, um
venerável, um arahant. É bom poder encontrar alguém tão nobre.’” Assim, os
brâmanes chefes de família de Setavya, saíram de Setavya pelo portão ao norte
em grupos e bandos e se dirigiram para a Floresta de Simsapa.
3. Agora, naquela ocasião, o
Príncipe Payasi havia se retirado para o andar superior do seu palácio para a
sesta. Então, ele viu os brâmanes chefes de família de Setavya, saindo de
Setavya em grupos e bandos e se dirigindo para a Floresta de Simsapa. Ao vê-los
ele perguntou ao seu ministro porque estava ocorrendo aquilo. O ministro disse:
“Senhor, é o contemplativo Kumara-Kassapa, um discípulo do contemplativo
Gotama... e acerca desse venerável Kassapa existe essa boa reputação... É por
isso que eles estão indo vê-lo.” “Muito bem, então ministro, vá até os brâmanes
chefes de família de Setavya e diga: ‘Senhores, o Príncipe Payasi diz o seguinte:
“Por favor, esperem, senhores. O Príncipe Payasi também irá ver o contemplativo
Kassapa.’” Esse contemplativo Kumara-Kassapa ensinará esses tolos e
inexperientes Brâmanes chefes de família de Setavya que existe um outro mundo,
que há seres que renascem espontaneamente e que existe fruto ou resultado de
ações boas ou más. Mas esse tipo de coisas não existe.” “Muito bem, venerável
senhor,” disse o ministro, e assim ele comunicou a mensagem.
4. O Príncipe Payasi, junto com
os Brâmanes chefes de família de Setavya, foi até a Floresta de Simsapa onde
estava o Venerável Kumara-Kassapa e ambos se cumprimentaram. Quando a conversa
amigável e cortês havia terminado ele sentou a um lado. E alguns homenagearam o
Venerável Kumara-Kassapa e sentaram a um lado; alguns trocaram saudações
corteses com ele e após a troca de saudações sentaram a um lado; alguns
ajuntaram as mãos em respeitosa saudação e sentaram a um lado; alguns
anunciaram o seu nome e clã e sentaram a um lado. Alguns permaneceram em
silêncio e sentaram a um lado.
5. Então, o Príncipe Payasi disse
para o Venerável Kumara-Kassapa: “Venerável Kassapa, eu acredito nesta doutrina
e idéia: não existe outro mundo, não há seres que renascem espontaneamente, não
existe fruto ou resultado de ações boas ou más.” “Muito bem, Príncipe, eu nunca
vi ou ouvi uma doutrina ou idéia como essa que você afirma. E assim, Príncipe,
eu o questionarei sobre isso e você responda como considerar adequado. O que
você pensa, Príncipe, o sol e a lua estão neste mundo ou noutro, eles são devas
ou humanos?”
“Venerável Kassapa, eles estão
noutro mundo e eles são devas, não humanos.” “Da mesma forma, Príncipe, você
deveria considerar: ‘Existe um outro mundo, há seres que renascem
espontaneamente, existe fruto ou resultado de ações boas ou más.’”
6. “Não importa o que você diga
com relação a isso, Venerável Kassapa, eu ainda penso que não existe outro
mundo...” “Você tem alguma justificativa para essa afirmação, Príncipe?” “Eu
tenho, Venerável Kassapa.” “Qual é, Príncipe?”
“Venerável Kassapa, eu tenho
amigos, companheiros e parentes, que tiram a vida de outros seres, tomam o que
não é dado, se comportam de forma imprópria em relação aos prazeres sensuais,
dizem mentiras, empregam a linguagem maliciosa, grosseira e frívola, que são cobiçosos,
possuem má vontade e têm entendimento incorreto. Com o tempo eles se enfermam e
sofrem adoentados. E quando tenho certeza de que eles não irão se recuperar, eu
vou até eles e digo: ‘Há certos contemplativos e Brâmanes que declaram e
acreditam que aqueles que tiram a vida ... têm entendimento incorreto, irão,
com a dissolução do corpo, após a morte, reaparecer num estado de privação, num
destino infeliz, nos reinos inferiores, até mesmo no inferno. Agora, vocês fizeram essas coisas e se aquilo que aqueles
contemplativos e Brâmanes dizem for verdade, é para lá que vocês irão. Agora,
se com a dissolução do corpo vocês reaparecerem num estado de privação, ...
venham até mim e declarem que existe um outro mundo, que há seres que renascem
espontaneamente, que existe fruto ou resultado de ações boas ou más. Vocês,
senhores, são responsáveis e confiáveis e aquilo que vocês virem será como se
eu mesmo tivesse visto, assim será.’ Mas embora eles concordem, eles não vêm
para me contar e tampouco mandam um mensageiro. Essa, Venerável Kassapa, é a
razão para a afirmação: ‘Não existe outro mundo, não há seres que renascem
espontaneamente, não existe fruto ou resultado de ações boas ou más.’”
7. “Quanto a isso, Príncipe, eu
lhe farei uma pergunta em
retorno. Responda como quiser. O que você pensa, Príncipe?
Suponha que trouxessem à sua presença um ladrão pego em flagrante e dissessem:
‘Este homem, Senhor, é um ladrão pego em flagrante. Sentencie-o
a qualquer punição que você desejar.’ E você poderá dizer: ‘Prendam os braços
deste homem para trás com uma corda forte, raspem a cabeça dele e conduzam-no
ao rufar dos tambores pelas ruas e praças e para fora da cidade pelo portão
sul, lá, dêem um fim nele aplicando a pena capital, decepando a sua cabeça!’ E
eles, dizendo: ‘Muito bem’, assentindo, poderiam ... conduzi-lo pelo portão sul
e lá decepar a cabeça dele. Agora, se aquele ladrão dissesse para os carrascos:
‘Estimados carrascos, nesta cidade ou vilarejo eu tenho amigos, companheiros e
parentes, por favor esperem até que eu os tenha visitado,’ ele obteria o seu
desejo? Ou eles simplesmente decepariam a cabeça daquele ladrão tagarela?” “Ele
não obteria o seu desejo, Venerável Kassapa. Eles simplesmente decepariam a
cabeça dele.”
“Portanto, Príncipe, aquele
ladrão não conseguiria sequer que os seus carrascos esperassem enquanto ele
visitava os seus amigos e parentes. Então, como poderiam os seus amigos,
companheiros e parentes que praticaram todas essas ações inábeis, tendo morrido
e renascido no inferno, persuadir os guardiões do inferno, dizendo: ‘Estimados
guardiões do inferno, por favor, esperem enquanto relatamos ao Príncipe Payasi
que existe um outro mundo, que há seres que renascem espontaneamente, que
existe fruto ou resultado de ações boas ou más?’ Por conseguinte, Príncipe,
admita que existe um outro mundo ...
8. “Não importa o que você diga
com relação a isso, Venerável Kassapa, eu ainda penso que não existe outro
mundo...” “Você tem alguma justificativa para essa afirmação, Príncipe?” “Eu
tenho, Venerável Kassapa.” “Qual é, Príncipe?”
“Venerável Kassapa, eu tenho
amigos... que se abstêm de tirar a vida de outros seres, de tomar o que não é
dado, que não se comportam de forma imprópria em relação aos prazeres sensuais,
não dizem mentiras, não empregam a linguagem maliciosa, grosseira e frívola,
que não são cobiçosos, não possuem má vontade e têm entendimento correto. Com o
tempo eles se enfermam... E quando tenho certeza que eles não irão se
recuperar, eu vou até eles e digo: ‘Há certos contemplativos e Brâmanes que
declaram e acreditam que aqueles que se abstêm de tirar a vida... têm
entendimento correto, irão, com a dissolução do corpo, após a morte, reaparecer
num destino feliz, no paraíso. Agora, vocês fizeram essas coisas e se aquilo
que aqueles contemplativos e Brâmanes dizem for verdade, é para lá que vocês
irão. Agora, se com a dissolução do corpo vocês reaparecerem num destino
feliz... venham até mim e declarem que existe um outro mundo... Vocês,
senhores, são responsáveis e confiáveis e aquilo que vocês virem será como se
eu mesmo tivesse visto, assim será.’ Mas embora eles concordem, eles não vêm
para me contar e tampouco mandam um mensageiro. Essa, Venerável Kassapa, é a
razão para afirmar: ‘Não existe outro mundo...’”
9. “Muito bem, então, Príncipe,
eu explicarei com um símile, pois alguns sábios compreendem o significado de um
enunciado através de um símile. Suponha que um homem caísse de cabeça numa
fossa e você dissesse para os seus auxiliares: ‘Tirem aquele homem da fossa!’ E
eles dissessem: ‘Muito bem,’ e assim fizessem. Então, você diria a eles que
limpassem por completo o corpo daquele homem com raspadeiras feitas de bambu e
depois lhe dessem um banho triplo com marga amarela. Depois você diria a eles
que friccionassem o corpo dele com óleo e depois o limpassem três vezes com
sabão em pó fino. E você os instruiria para que aparassem o cabelo e barba dele
e o enfeitassem com finas grinaldas, perfumes e roupas. Por fim, você diria a
eles que o conduzissem ao seu palácio e permitissem que ele desfrutasse dos
prazeres dos cinco sentidos, e assim fariam eles. O que você pensa, Príncipe?
Aquele homem, depois de banhado, com a barba e cabelo aparados, engrinaldado e
adornado, vestido de branco, depois de ter sido conduzido ao palácio, desfrutado
e gozado dos prazeres dos cinco sentidos, gostaria de ser novamente mergulhado
naquela fossa?” “Não, Venerável Kassapa.” “Porque não?” “Porque aquela fossa é
imunda, fétida, horrível, nojenta e em geral é assim considerada.”
“Exatamente da mesma maneira,
Príncipe, os seres humanos são imundos, fétidos, horríveis e nojentos e em
geral são assim considerados pelos devas. Então, porque deveriam os seus
amigos... que não praticaram ações inábeis... (igual ao verso 8), e que com a dissolução
do corpo, após a morte, reapareceram num destino feliz, no paraíso, retornar e
dizer: ‘Existe um outro mundo... existe fruto ou resultado de ações boas ou
más?’ Por conseguinte, Príncipe, admita que existe um outro mundo...
10. “Não importa o que você diga
com relação a isso, Venerável Kassapa, eu ainda penso que não existe outro
mundo...” “Você tem alguma justificativa para essa afirmação, Príncipe?” “Eu
tenho, Venerável Kassapa.” “Qual é, Príncipe?”
“Venerável Kassapa, eu tenho
amigos que se abstêm... de dizer mentiras, do álcool, vinho e outras bebidas
embriagantes. Com o tempo eles se enfermam... ‘Há certos contemplativos e
Brâmanes que declaram e acreditam que aqueles que se abstêm de tirar a vida...
e do álcool, vinho e outras bebidas embriagantes... irão, com a dissolução do
corpo, após a morte, reaparecer num destino feliz, no paraíso, como
companheiros dos devas do Trinta e Três...’ Mas embora eles concordem, eles não
vêm para me contar e tampouco mandam um mensageiro. Essa, Venerável Kassapa, é
a razão para afirmar: ‘Não existe outro mundo ...’”
11. “Quanto a isso, Príncipe, eu
lhe farei uma pergunta em
retorno. Responda como quiser. Aquilo, Príncipe, que para os
humanos são cem anos para os devas do Trinta e Três é um dia e uma noite.
Trinta dessas noites resultam num mês, doze desses meses, num ano e mil desses
anos é o tempo de vida dos devas do Trinta e Três. Agora, suponha que eles
pensassem: ‘Depois que gozarmos dos prazeres dos sentidos por dois ou três dias
iremos até Payasi para contar-lhe que existe um outro mundo, que há seres que
renascem espontaneamente, que existe fruto ou resultado de ações boas ou más,’
eles fariam isso?” “Não, venerável Kassapa, porque nós já teríamos morrido há
muito tempo. Mas, venerável Kassapa, quem lhe disse que os devas do Trinta e
Três existem e que eles vivem por tanto tempo? Eu não acredito que os devas do
Trinta e Três existam ou que vivam por tanto tempo.”
“Príncipe, imagine um homem que
seja cego de nascimento e que não possa ver objetos claros ou escuros ou
objetos azuis, amarelos, vermelhos, ou carmesins, não possa ver o plano e o
rugoso, não possa ver as estrelas e a lua. Ele poderia dizer: ‘Não existem
objetos claros e escuros e ninguém que possa vê-los... não existe o sol ou a
lua e ninguém que possa vê-los. Eu não tenho consciência disso e portanto, isso
não existe.’ Ele estaria falando da forma correta, Príncipe?” “Não, venerável
Kassapa. Existem objetos claros e escuros ..., existe um sol e uma lua e
qualquer um que diga: ‘Eu não tenho consciência disso e portanto isso não
existe’ não estaria falando da forma correta.”
“Bem, Príncipe, parece que a sua
resposta é igual à resposta do homem cego ao me perguntar como sei dos devas do
Trinta e Três e da sua longevidade. Príncipe, o outro mundo não pode ser visto
da forma como você pensa, através do olho físico. Príncipe, aqueles
contemplativos e Brâmanes que buscam nos lugares isolados na floresta, um local
que seja tranqüilo, com pouco ruído – eles ali permanecem afastados, decididos,
ardentes, purificando o olho divino e com esse olho divino purificado que
supera o poder do olho humano, eles tanto vêm este mundo como o mundo que está
além e os seres que renascem espontaneamente. Assim, Príncipe, é como o outro
mundo pode ser visto e não da forma como você pensa, através do olho físico.
Por conseguinte, Príncipe, admita que existe um outro mundo, que há seres que
renascem espontaneamente, que existe fruto ou resultado de ações boas ou más.”
12. “Não importa o que você diga
com relação a isso, Venerável Kassapa, eu ainda penso que não existe outro
mundo...” “Você tem alguma justificativa para essa afirmação, Príncipe?” “Eu
tenho, Venerável Kassapa.” “Qual é, Príncipe?”
“Bem, Venerável Kassapa, eu vejo
aqui alguns contemplativos e Brâmanes que observam a virtude e são bem
comportados, que desejam viver, não querem morrer, que desejam o prazer e
abominam a dor. E me parece que se esses bons contemplativos e Brâmanes que são
tão virtuosos e bem comportados sabem que depois da morte eles desfrutarão de
uma situação melhor, então essas boas pessoas deveriam agora mesmo tomar
veneno, tomar uma faca e se matar, enforcar-se ou pular de um penhasco. Mas,
embora eles tenham esse conhecimento, eles ainda assim desejam viver, não
querem morrer, eles desejam o prazer e abominam a dor. Essa, Venerável Kassapa,
é a razão para afirmar: ‘Não existe outro mundo... ’”
13. “Muito bem então, Príncipe,
eu explicarei com um símile, pois alguns sábios compreendem o significado de um
enunciado através de um símile. Certa vez, Príncipe, certo Brâmane tinha duas
esposas. Uma tinha um filho de dez ou doze anos, enquanto que a outra estava
grávida e próxima de dar à luz quando o Brâmane morreu. Então, aquele jovem
disse para a mulher grávida: ‘Senhora, toda a riqueza e posses, prata ou ouro,
que possa existir, será tudo meu. Meu pai fez de mim o seu herdeiro. ’ Em
resposta, a senhora Brâmane disse para o jovem: ‘Espere, jovem, até que eu dê à
luz. Se o bebê for um menino, uma parte será dele e se for uma menina, ela se
tornará sua serva. ’ O jovem repetiu as suas palavras uma segunda vez e recebeu
a mesma resposta. Quando ele as repetiu pela terceira vez, a senhora tomou uma
faca e indo para um cômodo privado, cortou a barriga, pensando: ‘Se pelo menos
pudesse descobrir se é um menino ou menina! ’” E assim ela destruiu a si mesma
e o feto, bem como a riqueza, tal como fazem os tolos que buscam a sua herança
sem sabedoria, desatentos aos perigos ocultos.
“Do mesmo modo você, Príncipe,
irá tolamente enfrentar perigos ocultos ao buscar um outro mundo sem sabedoria,
como aquela senhora Brâmane ao buscar a sua herança. Mas, Príncipe, aqueles
contemplativos e Brâmanes que observam a virtude e são bem comportados não
buscam acelerar o amadurecimento daquilo que ainda não está maduro, mas ao
invés disso, com sabedoria eles aguardam o seu amadurecimento. A vida é
benéfica para esses contemplativos e Brâmanes, pois quanto mais tempo esses
contemplativos e Brâmanes virtuosos e bem comportados permanecerem vivos, mais
méritos eles criarão; eles praticam para o bem-estar de muitos, para a
felicidade de muitos, por compaixão pelo mundo, pelo bem-estar e felicidade de
devas e humanos. Por conseguinte, Príncipe, admita que existe um outro mundo...
”
14. “Não importa o que você diga
com relação a isso, Venerável Kassapa, eu ainda penso que não existe outro
mundo...” “Você tem alguma justificativa para essa afirmação, Príncipe?” “Eu
tenho, Venerável Kassapa.” “Qual é, Príncipe?”
“Venerável Kassapa, suponha que
tragam à minha presença um ladrão pego em flagrante e digam: ‘Este homem,
Senhor, é um ladrão pego em flagrante. Sentencie-o a qualquer punição que
você desejar. ’ E eu diga: ‘Tomem esse homem e coloquem-no vivo dentro de uma
jarra. Fechem a boca da jarra com uma pele umedecida coberta com uma grossa
camada de argila úmida, coloquem-na num forno e acendam o fogo. ’ E assim eles
fazem. Quando temos certeza que o homem está morto, removemos a jarra,
quebramos a argila, destampamos a boca e observamos com cuidado: ‘Talvez
possamos ver a alma [4]
dele escapando. ’ Mas nós não vemos nenhuma alma escapando. Essa, Venerável
Kassapa, é a razão para afirmar: ‘Não existe outro mundo... ’”
15. “Quanto a isso, Príncipe, eu
lhe farei uma pergunta em
retorno. Responda como quiser. Você admite que ao ir para a
sua sesta ao meio-dia você teve visões prazerosas de parques, florestas,
campinas e lagos com flores de lótus?” “Eu tive, Venerável Kassapa.” “E nessa
ocasião você não é observado por corcundas, anões, meninas e donzelas?” “Eu
sou, venerável Kassapa.” “E eles observam a sua alma entrando ou saindo do seu
corpo?” “Não, venerável Kassapa.” “Então eles não vêm a sua alma entrando ou
saindo do seu corpo, mesmo você estando vivo. Portanto, como poderia você ver a
alma de um homem morto entrando ou saindo do seu corpo? Por conseguinte,
Príncipe, admita que existe um outro mundo ...”
16. “Não importa o que você diga
com relação a isso, Venerável Kassapa, eu ainda penso que não existe outro
mundo...” “Você tem alguma justificativa para essa afirmação, Príncipe?” “Eu
tenho, Venerável Kassapa.” “Qual é, Príncipe?”
“Venerável Kassapa, suponha que
tragam à minha presença um ladrão... E eu diga: ‘Pesem este homem vivo na
balança, depois o estrangulem e pesem-no outra vez. ’ E assim eles fazem. E
enquanto ele estava vivo, ele era mais leve, maleável e flexível, mas depois de
morto, ele ficou mais pesado, rígido e inflexível. Essa, Venerável Kassapa, é a
razão para afirmar: ‘Não existe outro mundo ...’”
17. “Muito bem então, Príncipe,
eu explicarei com um símile... Suponha que um homem pesasse uma bola de ferro
que tivesse sido aquecida durante todo um dia, inflamada, ardendo com
intensidade, brilhando. E suponha que depois de algum tempo, quando ela tivesse
esfriado, ele a pesasse novamente. Em qual momento a bola estaria mais leve,
maleável e mais flexível: quando estava quente, inflamada, ardendo com
intensidade, brilhando ou quando estava fria e extinta?”
“Venerável Kassapa, quando a bola
de ferro está quente, inflamada, ardendo com intensidade, brilhando, com o
predomínio dos elementos do fogo e ar, então ela estará mais leve, maleável e
flexível. Quando esses elementos não predominarem, ela tiver esfriado e
extinta, ela se tornará mais pesada, rígida e inflexível.” “Bem então,
Príncipe, ocorre o mesmo com o corpo. Quando ele tem vida, calor e consciência,
o corpo fica leve, maleável e flexível. Mas quando está privado da vida, calor
e consciência, o corpo fica pesado, rígido e inflexível. Da mesma forma,
Príncipe, você deveria considerar: ‘Existe um outro mundo...”
18. “Não importa o que você diga
com relação a isso, Venerável Kassapa, eu ainda penso que não existe outro
mundo...” “Você tem alguma justificativa para essa afirmação, Príncipe?” “Eu
tenho, Venerável Kassapa.” “Qual é, Príncipe?”
“Venerável Kassapa, suponha que
tragam à minha presença um ladrão... E eu diga: ‘Executem esse homem sem ferir
a sua cutícula, pele, músculos, tendões, ossos ou medula, ’ e assim eles fazem.
Quando ele está meio morto, eu digo: ‘Agora, deitem esse homem de costas e
talvez possamos ver a sua alma emergindo.’ Eles assim fazem, mas não podemos
ver a sua alma emergindo. Então eu digo: ‘Virem-no com a cara para baixo, ...
para o lado, ... o outro lado, ... coloquem-no em pé, ... coloquem-no de cabeça
para baixo, golpeiem-no com os punhos, ... atirem pedras nele,... batam nele
com paus, ... golpeiem-no com espadas, ... sacudam-no com isto ou aquilo e
talvez possamos ver a sua alma emergindo.’ Eles fazem todas essas coisas, mas
embora esse homem tenha olhos, ele não percebe objetos ou as suas bases, embora
tenha ouvidos, ele não ouve sons..., embora ele tenha nariz, não cheira
aromas..., embora ele tenha língua, não saboreia sabores..., embora ele tenha
um corpo, não sente os tangíveis ou as suas bases. Essa, Venerável Kassapa, é a
razão para afirmar: ‘Não existe outro mundo...’”
19. “Muito bem, então, Príncipe,
eu explicarei com um símile... Certa vez, houve um trompetista que pegou o seu
trompete e foi para um vilarejo na região fronteiriça. [5] Chegando, ele foi até o
centro do vilarejo e soprou o seu trompete três vezes e depois o colocou no
chão e sentou-se. Então, Príncipe, as pessoas pensaram: ‘De onde vem esse som
tão delicioso, tão doce, tão embriagante, tão convincente e cativante? ’ Eles
foram até o trompetista e perguntaram sobre isso. ‘Amigos, deste trompete é que
provém esse som delicioso. ’ Então eles deitaram o trompete no chão e
imploraram: ‘Cante, senhor trompete, cante! ’ Mas o trompete não emitiu nenhum
som. Então, eles o colocaram com a boca para baixo,... de lado,... do outro
lado,... em pé,... de cabeça para baixo,... golpearam-no com os punhos,...
atiraram pedras nele,... bateram nele com paus,... golpearam-no com espadas,...
sacudiram-no com isto ou aquilo, implorando: ‘Cante, senhor trompete, cante! ’
Mas o trompete não emitiu nenhum som. O trompetista pensou: ‘Que tola essa gente
fronteiriça! Estupidamente eles procuram o som do trompete! ’ E enquanto
aquelas pessoas o observavam, ele tomou o trompete, soprou três vezes e foi
embora. E aquelas pessoas pensaram: ‘Parece que quando o trompete é acompanhado
por um homem, pelo esforço e pelo vento, então ele produz um som. Mas quando
não é acompanhado por um homem, pelo esforço e pelo vento, então o trompete não
produz nenhum som. ’”
“Do mesmo modo, Príncipe, quando
este corpo tem vida, calor e consciência, então, ele vai e regressa, fica em pé
e senta e deita, vê coisas com os olhos, ouve com os ouvidos, cheira com o
nariz, saboreia com a língua, sente com o corpo e percebe os objetos mentais
com a mente. Mas quando não tem vida, calor ou consciência, ele não faz nenhuma
dessas coisas. Da mesma forma, Príncipe, você deveria considerar: ‘Existe um
outro mundo... ”
20. “Não importa o que você diga
com relação a isso, Venerável Kassapa, eu ainda penso que não existe outro
mundo...” “Você tem alguma justificativa para essa afirmação, Príncipe?” “Eu
tenho, Venerável Kassapa.” “Qual é, Príncipe?”
“Venerável Kassapa, suponha que
tragam à minha presença um ladrão... E eu diga: ‘Arranquem a pele externa desse
homem e talvez possamos ver a sua alma emergindo. ’ Então, digo para que
arranquem a pele interna, os músculos, tendões, ossos, medula... mas nós não
vemos nenhuma alma escapando. Essa, Venerável Kassapa, é a razão para afirmar:
‘Não existe outro mundo ...’”
21. “Muito bem então, Príncipe,
eu explicarei com um símile... Certa vez, houve um asceta com o cabelo
emaranhado e sujo que adorava o fogo [6] e que vivia na floresta
numa cabana feita de folhas. Certa tribo estava migrando e o seu líder ficou,
por uma noite, próximo da moradia do adorador do fogo e depois partiu. Então, o
adorador do fogo pensou que ele poderia ir até o local para ver se encontraria
algo que pudesse ser útil para ele. Ele levantou cedo e foi até o local e lá
ele encontrou um pequeno bebê, menino, deitado de costas, abandonado. Ao vê-lo
ele pensou: ‘Não seria correto que eu o ignorasse deixando que um ser humano
morra. É melhor que eu leve essa criança para a minha cabana, tome conta dela,
alimente-a e crie-a.’ E assim ele fez. Quando o menino tinha dez ou doze anos,
o eremita com alguns assuntos para tratar na vizinhança, disse para o menino:
‘Eu irei até a vizinhança, meu filho. Você tome conta do fogo e não permita que
ele apague. Se ele apagar, aqui está um machado, aqui estão alguns gravetos
para acender o fogo para que você possa reacendê-lo e cuidar dele.’ Depois de
instruir o menino dessa forma, o eremita foi até a vizinhança. Mas o menino,
entretido com os seus brinquedos, deixou que o fogo se apagasse. Então, ele
pensou: ‘O meu pai disse: “ ... aqui está um machado... para que você possa
reacender o fogo e cuidar dele.” Agora é melhor que eu faça isso!’ Então, ele
picou os gravetos com o machado, pensando: ‘Espero que consiga acender o fogo
desse modo.’ Mas ele não conseguiu acender o fogo. Ele cortou os gravetos para
acender o fogo em dois, três, quatro, cinco, dez, cem pedaços, ele os lascou,
ele os moeu num almofariz, ele os peneirou ao vento, pensando: ‘Espero que
consiga acender o fogo desse modo.’ Mas ele não conseguiu acender o fogo, e quando
o eremita regressou, depois de ter concluído os seus assuntos, ele disse:
‘Filho, porque você deixou o fogo apagar?’ e o menino relatou aquilo que havia
acontecido. O eremita pensou: ‘Que estúpido é esse menino, que falta de bom
senso! Que maneira mais impensada de tentar acender um fogo!’ Assim, enquanto o
menino observava, ele tomou os gravetos para acender o fogo e o reacendeu,
dizendo: ‘Filho, esse é o modo para reacender um fogo, não a maneira estúpida,
impensada, sem sentido que você tentou!’
“Do mesmo modo, Príncipe, você
está procurando um outro mundo de um modo estúpido, impensado e sem sentido.
Príncipe, abandone essa idéia perniciosa, deixe-a de lado! Não permita que ela
lhe traga desgraça e sofrimento por muito tempo!”
22. “Muito embora você diga isso,
venerável Kassapa, eu ainda não suporto abandonar essa idéia perniciosa. O Rei
Pasenadi de Kosala conhece as minhas idéias e assim também os reis no
estrangeiro. Se eu abandonar essas idéias, eles dirão: ‘Que tolo é o Príncipe
Payasi, estupidamente ele se agarrava a idéias incorretas! ’ Eu permanecerei
apegado a essas idéias com raiva, desdém e ressentimento!”
23. “Muito bem então, Príncipe,
eu explicarei com um símile... Certa vez, Príncipe, uma grande caravana com mil
carroças estava viajando do leste para o oeste. E aonde quer que fossem eles
rapidamente consumiam todo o capim, madeira e toda a vegetação. Agora, essa
caravana tinha dois líderes, cada um responsável por quinhentas carroças. E
eles pensaram: ‘Esta é uma grande caravana com mil carroças. Onde quer que nós
vamos, consumimos todas as provisões. Talvez devêssemos dividir a caravana em
dois grupos com quinhentas carroças cada um, ’ e assim eles fizeram. Então, um
dos líderes juntou capim, madeira e água em abundância e partiu. Depois de dois
ou três dias de jornada ele viu vindo na sua direção um homem escuro com os
olhos vermelhos, tremendo e com uma coroa de nenúfares brancos, com as roupas e
o cabelo molhados, conduzindo uma carroça puxada por um burro cujas rodas
estavam salpicadas pela lama. Ao ver aquele homem, o líder disse: ‘De onde você
vem, senhor?’ ‘De tal e qual lugar.’ ‘E para onde você vai?’ ‘Para tal e qual
lugar.’ ‘Tem chovido muito na floresta que está mais à frente?’ ‘Ah, sim
senhor, tem chovido muito na floresta que está mais à frente; as estradas estão
bem umedecidas e há capim, madeira e água em abundância. Jogue
fora o capim, madeira e água que você traz consigo, senhor! Você avançará com
maior rapidez com as carroças mais leves, e assim os bois não se cansarão!’ O
líder da caravana disse para os carroceiros aquilo que o homem havia dito:
‘Joguem fora o capim, madeira e água..., ’ e assim eles fizeram. Mas no
acampamento seguinte eles não encontraram nenhuma grama, madeira e água, nem no
segundo, terceiro, quarto, quinto, sexto ou sétimo, e assim eles acabaram
arruinados e aniquilados. E todos que faziam parte da caravana, homens e gado,
foram devorados por aquele yakkha, [7] só restando os seus
ossos. [8]
“E quando o líder da segunda
caravana estava seguro que a primeira caravana havia avançado o suficiente, ele
se abasteceu de capim, madeira e água em abundância. Depois
de dois ou três dias de jornada este líder viu, vindo na sua direção, um homem
escuro com os olhos vermelhos... que o aconselhou a jogar fora as suas
provisões de capim, madeira e água. Então, o líder disse para os carroceiros:
‘Este homem está-nos dizendo que joguemos fora o capim, madeira e água que
temos. Mas ele não é um dos nossos amigos ou parentes, então porque deveríamos
confiar nele? Portanto, não joguem fora o capim, madeira e água que temos; que
a caravana continue o seu caminho com as provisões que trouxemos e não joguem
fora nada!’ Os carroceiros concordaram e fizeram aquilo que ele disse. E no
acampamento seguinte eles não encontraram nenhuma grama, madeira e água, nem no
segundo, terceiro, quarto, quinto, sexto ou sétimo, mas neste último eles viram
que a outra caravana havia sido arruinada e aniquilada, e eles viram os ossos
daqueles homens e do gado que haviam sido devorados pelo yakkha. Então, o líder
da caravana disse para os carroceiros: ‘Aquela caravana foi arruinada e
aniquilada devido à estupidez do seu líder. Agora deixemos para trás aquelas
mercadorias de pouco valor que trazemos e tomemos da outra caravana o que há de
mais valor.’ E assim eles fizeram. E com aquele líder sábio eles atravessaram a
floresta em segurança.
“Do mesmo modo, Príncipe, você
será arruinado e aniquilado se continuar procurando um outro mundo de modo
incorreto, estúpido e tolo. Aqueles que pensam, que podem confiar em qualquer
coisa que ouvirem, estão destinados à ruína e aniquilação, como aqueles
carroceiros. Príncipe, abandone essa idéia perniciosa, deixe-a de lado! Não
permita que ela lhe traga desgraça e sofrimento por muito tempo!”
24. “Muito embora você diga isso,
venerável Kassapa, eu ainda não suporto abandonar essa idéia perniciosa... Se
eu abandoná-la, eles dirão: ‘Que tolo é o Príncipe Payasi... ’”
25. “Muito bem então, Príncipe,
eu explicarei com um símile... Certa vez, um pastor de porcos estava indo do
seu vilarejo para um outro vilarejo. Então, ele viu um monte de esterco seco
que havia sido jogado fora e ele pensou: ‘Aqui há bastante esterco seco que
alguém jogou fora, isso é alimento para os meus porcos. Eu devo levar isso
comigo. Ele abriu a sua capa, recolheu nela o esterco, fez uma trouxa
colocando-a sobre a cabeça e seguiu o seu caminho. No caminho de volta caiu uma
pesada chuva, mas sem deixar de carregar a trouxa de esterco ele seguiu o seu
caminho, salpicado com o esterco que se esvaia e pingava por todos os lados até
a ponta dos seus dedos. Aqueles que o viam diziam: ‘Você deve estar louco! Você
deve estar maluco! Porque você está carregando essa trouxa com esterco que está
se esvaindo e pingando por todos os lados até a ponta dos seus dedos? ’ ‘Vocês
é que estão loucos! Vocês é que estão malucos! Isto é comida para os meus
porcos. ’ Príncipe, você fala como o carregador de esterco na minha história.
Príncipe, abandone essa idéia perniciosa, deixe-a de lado! Não permita que ela
lhe traga desgraça e sofrimento por muito tempo!”
26. “Muito embora você diga isso,
venerável Kassapa, eu ainda não suporto abandonar essa idéia perniciosa... Se
eu abandoná-la, eles dirão: ‘Que tolo é o Príncipe Payasi ...’”
27. “Muito bem então, Príncipe,
eu explicarei com um símile... Certa vez, dois jogadores estavam usando nozes
no lugar de dados. Um deles, sempre que a jogada não o favorecia, engolia a
noz. O outro se deu conta do que ele estava fazendo e disse: ‘Tudo bem, meu
amigo, você é o vencedor! Passe me as nozes para que eu lhes faça uma
oferenda.’ ‘Está bem,’ disse o primeiro e lhe deu as nozes. Então, o segundo
recheou as nozes com veneno e depois disse: ‘Venha, vamos jogar!’ O outro
concordou e eles jogaram novamente e uma vez mais o primeiro jogador, sempre
que a jogada não o favorecia, engolia a noz. O segundo ficou só observando o
outro fazer isso e depois recitou este verso:
‘Os dados
estão besuntados com algo que queima,
Ele, porém
engole sem saber.
Engula,
trapaceiro, engula bem -
O amargor será
igual ao inferno!’
“Príncipe, você fala igual ao
jogador na minha história. Príncipe, abandone essa idéia perniciosa, deixe-a de
lado! Não permita que ela lhe traga desgraça e sofrimento por muito tempo!”
28. “Muito embora você diga isso,
venerável Kassapa, eu ainda não suporto abandonar essa idéia perniciosa... Se
eu abandoná-la, eles dirão: ‘Que tolo é o Príncipe Payasi ...’”
29. “Muito bem, então, Príncipe,
eu explicarei com um símile... Certa vez, os habitantes de certa vizinhança
migraram. E um homem disse para o seu amigo: ‘Venha, vamos até aquela
vizinhança, poderemos encontrar algo de valor!’ O amigo dele concordou e assim
eles foram para aquele distrito e chegaram numa das ruas do vilarejo. Lá eles
viram um monte de cânhamo que havia sido jogado fora e um deles disse: ‘Veja
este monte de cânhamo. Você faz uma trouxa, eu faço outra e nós dois levaremos
isso embora,’ o outro concordou e assim eles fizeram. Então, chegando a uma
outra rua do vilarejo, eles encontraram fios de cânhamo e um deles disse: ‘Essa
pilha de fios de cânhamo é exatamente a razão pela qual queríamos o cânhamo.
Joguemos fora a trouxa de cânhamo e sigamos cada um com um monte de fios de
cânhamo.’ ‘Eu já carreguei essa trouxa de cânhamo por uma longa distância e ela
está bem amarrada, isso será o suficiente para mim – quanto a você, faça o que
quiser!’ Assim o companheiro jogou fora o cânhamo e tomou o fio de cânhamo.
“Chegando a uma outra rua do
vilarejo eles encontraram panos feitos de cânhamo e um deles disse: ‘Esta pilha
de panos de cânhamo é exatamente a razão pela qual queríamos o cânhamo e os
fios de cânhamo. Jogue fora a sua trouxa de cânhamo, que eu jogarei fora o meu
monte de fios de cânhamo e nós seguiremos cada um com um monte de panos de
cânhamo.’ Mas o outro respondeu do mesmo modo que antes, assim o companheiro
jogou fora o monte de fios de cânhamo e tomou o monte de panos de cânhamo. Num
outro vilarejo eles viram um monte de linho,..., em outro, fios de linho,...,
em outro, panos de linho,..., em outro, algodão,..., em outro, fios de
algodão,..., em outro, panos de algodão,... , em outro, ferro,..., em outro,
cobre,... , em outro, estanho, ..., em outro, chumbo, ..., em outro, prata, ...
, em outro, ouro. Então um deles disse: ‘Este monte de ouro é exatamente a
razão pela qual queríamos o cânhamo, fios de cânhamo, panos de cânhamo, linho,
fios de linho, panos de linho, algodão, fios de algodão, panos de algodão,
ferro, cobre, estanho, chumbo, prata. Jogue fora a sua trouxa de cânhamo, que
eu jogarei fora o meu monte de prata e nós seguiremos cada um com um monte de
ouro.’ Eu já carreguei essa trouxa de cânhamo por uma longa distância e ela
está bem amarrada, isso será o suficiente para mim – quanto a você, faça o que
quiser!’ Assim o companheiro jogou fora o monte de prata e tomou o monte de
ouro.
“Então, eles regressaram ao
vilarejo deles. Aquele que voltou com uma trouxa de cânhamo não satisfez aos
seus pais, nem à sua esposa e filhos e tampouco aos seus amigos e companheiros,
e ele não obteve para si mesmo nenhuma alegria ou felicidade. Mas aquele que
voltou com um monte de ouro satisfez os seus pais, sua esposa e filhos, seus
amigos e companheiros, e ele obteve para si mesmo muita alegria e felicidade.”
“Príncipe, você fala como o
carregador de cânhamo na minha história. Príncipe, abandone essa idéia
perniciosa, deixe-a de lado! Não permita que ela lhe traga desgraça e
sofrimento por muito tempo!”
30. “Eu estava satisfeito e
contente com o primeiro símile do venerável Kassapa, mas queria ouvir as
respostas perspicazes dele a estas perguntas, porque supus que ele era um
adversário digno. Magnífico, venerável Kassapa! Magnífico, venerável Kassapa! O
venerável Kassapa esclareceu o Dhamma de várias formas, como se tivesse
colocado em pé o que estava de cabeça para baixo, revelasse o que estava
escondido, mostrasse o caminho para alguém que estivesse perdido ou segurasse uma
lâmpada no escuro para aqueles que possuem visão pudessem ver as formas.
Venerável Kassapa, eu busco refúgio no Abençoado, no Dhamma e na Sangha dos
bhikkhus. Que o venerável Kassapa me aceite como discípulo leigo para o resto
da vida. E, venerável Kassapa, eu gostaria de oferecer um grande sacrifício.
Instrua-me, venerável Kassapa, como isso deve ser feito para o meu bem-estar e
felicidade por muito tempo.”
31. “Príncipe, quando um
sacrifício, onde são mortos touros, bois ou novilhos, bodes ou carneiros, ou
vários outros tipos de seres vivos, é realizado; [9] e os participantes têm
entendimento incorreto, pensamento incorreto, linguagem incorreta, ação
incorreta, modo de vida incorreto, esforço incorreto, atenção plena incorreta e
concentração incorreta, então, esse sacrifício não traz grandes frutos ou
benefícios, ele não é muito brilhante e não tem luminosidade. Suponha Príncipe,
que um agricultor fosse para a floresta com um arado e sementes, e lá, num
pedaço de terra não cultivado, com solo pobre, onde os tocos não tivessem sido
desenraizados, ele semeasse sementes que estivessem quebradas, apodrecidas,
velhas, arruinadas pelo vento e pelo calor, e que elas fossem plantadas no solo
da forma inadequada, e que o deus da chuva não mandasse as chuvas no momento
apropriado – essas sementes germinariam, se desenvolveriam e cresceriam, e o
agricultor obteria uma colheita abundante?” “Não, venerável Kassapa.”.
“Então, Príncipe, ocorre o mesmo
com um sacrifício no qual são mortos touros... os participantes têm
entendimento incorreto... concentração incorreta. Mas quando nenhuma dessas
criaturas é morta e os participantes têm entendimento correto, pensamento
correto, linguagem correta, ação correta, modo de vida correto, esforço
correto, atenção plena correta e concentração correta, então aquele sacrifício
traz grandes frutos ou benefícios, ele é muito brilhante e tem luminosidade.
Suponha, Príncipe, que um agricultor fosse para a floresta com um arado e
sementes, e lá, num pedaço de terra bem cultivado com solo rico, do qual os
tocos tivessem sido desenraizados, ele semeasse sementes que não estivessem
quebradas, apodrecidas, ou velhas, arruinadas pelo vento e pelo calor, e que
elas fossem plantadas no solo de forma adequada e que o deus da chuva mandasse
as chuvas no momento apropriado – essas sementes germinariam, se desenvolveriam
e cresceriam, e o agricultor obteria uma colheita abundante?” “Sim, venerável
Kassapa.”
“Do mesmo modo, Príncipe, um
sacrifício no qual não são mortos touros,... os participantes têm entendimento
correto,... concentração correta, então, esse sacrifício traz grandes frutos ou
benefícios, ele é muito brilhante e tem luminosidade.”
32. Então, o Príncipe Payasi estabeleceu
uma caridade para contemplativos e Brâmanes, peregrinos, mendigos e para os
necessitados. A comida servida era arroz de segunda com mingau azedo e também a
roupa oferecida era grosseira e áspera. Um jovem brâmane chamado Uttara foi
colocado como responsável pela distribuição. Em relação a isso ele dizia:
“Através desta caridade estou associado ao Príncipe Payasi neste mundo, mas não
no mundo que está além.”.
E o Príncipe Payasi depois de
ouvir aquelas palavras pediu que ele viesse à sua presença e aí perguntou-lhe
se ele havia dito aquilo. “Sim, senhor.” “Mas porque você disse esse tipo de
coisa? Amigo Uttara, nós, que desejamos ganhar mérito, não esperamos uma
recompensa pela nossa caridade?”
“Mas, senhor, a comida que você
dá - arroz de segunda com mingau azedo – você não iria querer tocá-la nem com o
pé, quanto menos comê-la! E as roupas grosseiras e ásperas – você não iria
querer tocá-las nem com o pé, quanto menos vesti-las! Senhor, você é amável e
generoso conosco, mas como podemos reconciliar tal amabilidade e generosidade
com a crueldade e mesquinhez?” “Muito bem Uttara, então, providencie para que a
comida oferecida seja aquela que eu como e as roupas, as que eu visto.” “Muito
bem, senhor,” Uttara disse e assim ele fez.
E o Príncipe Payasi, porque havia
estabelecido aquela caridade com rancor e não com as suas próprias mãos, sem o
cuidado apropriado, como se de modo descuidado jogasse algo fora, renasceu com
a dissolução do corpo, após a morte, na companhia dos Quatro Grandes Reis, na mansão
vazia Serisaka. Mas Uttara, que havia dado a caridade sem rancor, com as suas
próprias mãos e com o interesse apropriado, não de modo descuidado, com a
dissolução do corpo, após a morte, renasceu num destino feliz, no paraíso, na
companhia dos devas do Trinta e Três.
33. Agora, naquela ocasião, o
Venerável Gavampati tinha o hábito de ir até a mansão vazia Serisaka para a sua
sesta do meio-dia. E Payasi foi até o Venerável Gavampati e depois de
cumprimentá-lo ficou em pé a um lado. E o venerável Gavampati disse o seguinte:
“Quem é você, amigo?” “Senhor, eu sou o Príncipe Payasi.” “Amigo, você não é
aquele que costumava dizer: ‘Não existe outro mundo, não há seres que renascem
espontaneamente, não existe fruto ou resultado de ações boas ou más’?” “Sim, senhor,
eu sou aquele que costumava dizer isso, mas fui convertido dessa idéia
perniciosa pelo nobre Kumara-Kassapa.” “E onde renasceu o jovem Brâmane Uttara,
que estava a cargo da distribuição da sua caridade?”.
“Senhor, ele que deu a caridade
sem rancor... renasceu num destino feliz, no paraíso, na companhia dos devas do
Trinta e Três, mas eu, que dei com rancor... renasci aqui na mansão vazia
Serisaka. Senhor, por favor, quando você retornar para o mundo humano, diga
para as pessoas darem sem rancor... e diga-lhes onde o Príncipe Payasi e o
jovem Brâmane Uttara renasceram.”
34. E assim o Venerável
Gavampati, ao retornar ao mundo humano, declarou: “Vocês devem dar sem rancor,
com as próprias mãos e com o cuidado apropriado, não de modo descuidado. O Príncipe
Payasi não fez isso e com a dissolução do corpo, após a morte, ele renasceu na
companhia dos Quatro Grandes Reis na mansão vazia de Serisaka, enquanto que o
administrador da sua caridade, o jovem Brâmane Uttara, que deu sem rancor, com
as suas próprias mãos e com o cuidado apropriado, não de modo descuidado,
renasceu na companhia dos devas do Trinta e Três.”
Notas:
[1] Conhecido como o “Jovem
Kassapa” para distingui-lo de outros Kassapa, como Maha-Kassapa, (DN 16.6.19).
Descrito como o “melhor pregador na Sangha”, ele demonstra as suas habilidades
neste debate com Payasi. [Retorna]
[2] Este não é o mesmo bosque de
Simsapa onde Buda discursou a conhecida parábola das folhas de simsapa (SN LVI.31), que
ficava em Kosambi. [Retorna]
[5] As pessoas que viviam na
região fronteiriça eram consideradas estúpidas. [Retorna]
[6] Jatila. Pouco tempo depois da sua iluminação o Buda converteu os
três irmãos Kassapa que eram adoradores do fogo. [Retorna]
[7] Neste caso o yakkha definitivamente é uma criatura
má, compare com o DN
18.9. [Retorna]
[8] Esta história também é
relatada no Jataka 1, e uma história parecida no Jataka 2.[Retorna]