Nos suttas, os discursos do Buda, existe uma
objetividade na significação dos termos a um nível que talvez não seja
encontrada em nenhuma outra religião. O discurso não usa descuidadamente
qualquer palavra que caiba ou seus sinônimos, como se faz normalmente numa fala
improvisada ou numa aula planejada, se referindo a determinadas coisas que são
bem específicas no ensinamento Buda. Não são termos vagos e gerais indefinidos,
por exemplo tais como “façamos o bem”, por exemplo, mas pelo contrário quando o
Buda diz “fazer o bem” é porque ele já explicou exatamente o que é o bem e como
faze-lo, fazer o bem é uma sentença que então vai resumir uma série de
ensinamentos dados.
Um exemplo que ilustra bem isso é quando Buda diz
para praticar metta (amorosidade), ele antes já definiu que metta é o desejo de
que o outro seja feliz e até já prescreveu exercícios, meditações e ações que
fazem surgir em nós essa característica e qual a consequência do seu
desenvolvimento. Gosto especialmente de usar esse exemplo porque contrasta bem
com a maneira que somos acostumados no ocidente, no caso Buda não diz, que
devemos ser amorosos e ao mesmo tempo que “o amor é indefinível”, ele diz como
foi dito acima, o que é o amor que devemos ter e praticar. Outro grande exemplo
muito usado é que ele diz que devemos ser compassivos e que a compaixão é a
vontade de livrar o outro do sofrimento, o que torna a “definição” efetiva, não
limitante como estamos acostumados e bem distante de suas costumeiras
associações passivas tais como “pena” e “piedade”. São palavras precisas e
repetidas da mesma forma e na mesma ordem em outros suttas, ou no mesmo, como
que insistindo para que aquilo seja bem compreendido e inclusive memorizado.
Esta maneira de organização denota o quanto a
assimilação de certos elementos do discurso é importante para o primeiro dos
elementos do nobre caminho óctuplo, o entendimento correto. Tais termos específicos
aparecem sempre e são repetidos e explicados mais detalhadamente sempre em
outros suttas. Inegavelmente esse tipo vocabulário específico, que chega a ser
chamado de vocabulário técnico do budismo por alguns, constitui uma rede de
conhecimentos e de revisões de conceitos (cotidianos da época ou inovadores) que
faz parte do que se chama entendimento correto, como transborda em algumas das
citações abaixo do texto abaixo.
Destaquei grifando termos e expressões e também
enumerando ou marcando com letras os conjuntos de expressões para indicar
aqueles que sempre aparecem, que constituem fundamentos do ensinamento. Fiz
assim não só para indicá-los, mas porque merecem que procuremos maior uma maior
apreciação e aprofundamento, seja nos textos dos quais são tirados ou de outros.
Essa enumeração ou letras aparece entre colchetes assim como qualquer coisa que
tenha sido colocada ali por mim ou pelo tradutor. Esses termos e mesmo certas
sequências ou conjuntos e expressões já podem ser encontradas em vocabulários
de budismo ou dicionários. Existem também os dicionários de pali, linguagen do
cânone, nos quais vão ser encontrados outros significados usados em outras
traduções. Para mim é muito benéfico e sempre esclarecedor quando pesquisamos
em outros suttas e em vocabulários sobre estes termos e expressões que depois
vão constituir em nossa memória a síntese de vários ensinamentos e práticas do
dia a dia.
Outros elementos importantes que vão constituir o
entendimento correto são indicados pelo Buda como se verá nas citações. A
definição de entendimento correto mais geral e a primeira que aparece já é uma
bem específica. No budismo não é simplesmente qualquer conhecimento exato que é
chamado de entendimento correto, mas o entendimento, por si mesmo, e de forma
correta, das quatro nobres verdades acerca do sofrimento (dukkha, também
traduzido mais exatamente como insatisfatoriedade). Uma tradução em muitos
casos mais adequada de samma ditthi, traduzido aqui como entendimento correto,
é visão correta. Essa tradução mostra mais ainda que não é qualquer tipo de
entendimento de qualquer coisa, mas uma mudança real na maneira habitual de
ver, uma mudança de visão, um reler de uma nova forma a experiência através de
um entendimento, de um esclarecimento.
Ver as coisas como elas são tem também, no budismo,
um significado específico que é a característica mais marcante da existência, as
chamadas três marcas da existência, a saber, impermanência (anicca),
insatisfatoriedade (dukkha) também traduzido como sofrimento ou estar sujeito
ao sofrimento e insubstancialidade (anatta) também traduzido como não-eu. Isto significa
enxergar ou entender, em todas as coisas ou fenômenos, como são impermanentes,
insatisfatórios (seja por serem desagradáveis ou por serem impermantentes) e
desprovidos de uma essência ou substância imutável ou eterna. Entender corretamente,
portanto, é o que impulsiona a busca por aquilo que é satisfatório, permanente
e imutável, que é conseguido através dos outros elementos do caminho óctuplo.
O autor do texto mostrará também, através de
citações, a relação com outros componentes do caminho óctuplo; quais são as ideias
errôneas que constituem obstáculo a esses entendimentos corretos e como se
livrar delas para alcançar as corretas. Mostra também o conjunto das ideias que
aprisionam a nossa visão e o nosso entendimento e como devemos por nós mesmos
alcançar e reconhecer um conhecimento seguro.
Entender pode ser considerado também como uma etapa
ou primeiro passo por aquele que se aproxima do budismo, pois dificilmente
compreenderá e alcançará as experiências necessárias se tomar os termos usados
apenas por seu uso coloquial ou sem dar importância a exata relação (por isso
mesmo sempre repetida) com ideias de importância pragmática, melhor dizendo,
com ideias que são bem definidas com o objetivo de ampliar significativamente a
visão correta dos fenômenos ou das práticas às quais se referem. Exemplos disso
são facilmente encontrados nas ideias que aprisionam citadas no texto. Exemplos
muito importantes mais ligados à prática serão encontrados nos próximos textos
dessa série organizada por Michael Beizert no site www.acessoaoinsight.net.
Entendimento
Correto
Samma
Ditthi
Entendimento correto é o primeiro
dos oito elementos do Nobre Caminho Óctuplo e, pertence
ao grupo da sabedoria
Definição
Sua relação com os outros
elementos do caminho.
"E como é que o entendimento correto vem
primeiro? A pessoa compreende entendimento incorreto como entendimento
incorreto e, entendimento correto como entendimento correto: esse é o
entendimento correto de uma pessoa. E o que é entendimento incorreto? [1] 'Não
existe nada que é dado, nada que é oferecido, nada que é sacrificado; [2]
não existe fruto ou resultado de ações boas ou más; [3] não existe este mundo nem
um mundo seguinte; [4] não existe mãe, nem pai; [5] nenhum ser que renasça
espontaneamente; [6] não existem sacerdotes nem contemplativos bons e virtuosos
que, após terem conhecido e compreendido diretamente por eles mesmos, proclamam
este mundo e o próximo.' Isto é entendimento incorreto.
"A pessoa faz o [1] esforço para abandonar o
entendimento incorreto e [2 esforço para] penetrar o entendimento correto: esse
é o esforço correto da pessoa. A pessoa com
atenção plena abandona o entendimento incorreto e penetra e
permanece com o entendimento correto. Essa é a atenção plena de uma pessoa. Assim essas três
qualidades – [1] entendimento correto, [2] esforço correto e [3] atenção plena correta – giram em
torno do entendimento correto."
Um emaranhado de entendimentos
incorretos
“Neste caso bhikkhus, uma pessoa comum [a] sem
instrução [b] que não respeita os nobres, [c] que não é proficiente nem
treinada no Dhamma deles, [d] que não respeita os homens verdadeiros, [e] que
não é proficiente nem treinada no Dhamma deles, não entende o tipo de coisas
que merecem atenção e que tipo de coisas não merecem atenção. Assim sendo,
ela se preocupa com aquelas coisas que não merecem atenção e não se preocupa
com as coisas que merecem atenção.”
É desta forma que ela se ocupa sem sabedoria: ‘Eu existi no passado? Não existi no passado? O que fui no passado?
Como eu era no passado? Tendo sido que, no que me tornei no passado? Existirei
no futuro? Não existirei no futuro? O que serei no futuro? Como serei no
futuro? Tendo sido que, no que me tornarei no futuro?’ Ou então ela está no seu
íntimo perplexa acerca do presente: ‘Eu sou? Eu não sou? O que sou? Como sou?
De onde veio este ser? Para onde irá?’
“Quando ela se ocupa dessa forma, sem sabedoria, uma
entre seis idéias surgem nela. A idéia de que [1] ‘um eu existe em mim’
surge como verdadeira e consagrada; ou a idéia de que [2] ‘um eu não existe em
mim’ surge como verdadeira e consagrada; ou a idéia de que [3] ‘eu percebo o eu
através do eu’ surge como verdadeira e consagrada; ou a idéia de que [4] ‘eu percebo
o não-eu através do eu’ surge como verdadeira e consagrada; ou a idéia de que [5]
‘eu percebo o eu através do não-eu’ surge como verdadeira e consagrada; ou
então ela tem uma idéia como esta: [6] ‘É esse meu eu que fala e sente e
experimenta aqui e ali o resultado de boas e más ações; mas esse meu eu é
permanente, interminável, eterno, não sujeito à mudança e que irá durar tanto
tempo quanto a eternidade.’ Essas idéias especulativas, bhikkhus, se denominam
um emaranhado de idéias, uma confusão de idéias, idéias contorcidas, idéias
vacilantes, idéias que agrilhoam. Aprisionado pelas idéias que
agrilhoam, a pessoa comum sem instrução não se vê livre do nascimento,
envelhecimento e morte, da tristeza, lamentação, dor, angústia e desespero; ela
não se vê livre do sofrimento, eu digo.
“Bhikkhus, um nobre discípulo [a] bem
instruído, [b] que respeita os nobres, [c] que é proficiente e treinado no
Dhamma deles, [d] que respeita os homens verdadeiros, [e] que é proficiente e
treinado no Dhamma deles, entende quais são as coisas que merecem atenção e
quais são as coisas que não merecem atenção. Sendo assim, ele não se ocupa
com as coisas que não merecem atenção, ele se ocupa com as coisas que merecem
atenção.
Quando o conhecimento de uma
pessoa é verdadeiramente seu
[Kaccayana:] “Venerável senhor, é dito
‘Entendimento correto, entendimento correto.’ De que forma existe entendimento
correto?”
[O Buda:] “Kaccayana, em geral este mundo depende
de uma dualidade, a noção da existência e a noção da não existência. Mas
para aquele que vê com correta sabedoria a origem do mundo, tal
como na verdade ela ocorre, a noção da ‘não existência’ com relação ao mundo
não lhe ocorrerá. Aquele que vê com correta sabedoria a cessação do mundo,
tal como na verdade ela ocorre, a noção da ‘existência’ com relação ao mundo
não lhe ocorrerá.
“Kaccayana, em geral este mundo é aprisionado
por adesões, apegos e preconceitos. Mas uma pessoa como essa [com
entendimento correto] não se envolve ou se apega através dessas adesões,
apegos, fixações mentais, inclinações ou obsessões; e ela não toma uma
determinação com relação ao ‘meu eu’; ela não tem dúvida ou perplexidade que
aquilo que surge é apenas o sofrimento surgindo, aquilo que cessa é apenas o
sofrimento cessando. O conhecimento dela com relação a isso não depende dos
outros. É com referência a isso, Kaccayana, que existe o entendimento correto.
Abandonando o que é inábil,
cultivando o que é hábil
"Não se deixem levar pelos relatos, pelas
tradições, pelos rumores, por aquilo que está nas escrituras, pela razão, pela
inferência, pela analogia, pela competência (ou confiabilidade) de alguém, por
respeito por alguém, ou pelo pensamento, ‘Este contemplativo é o nosso mestre.’
Quando vocês souberem por vocês mesmos que, ‘Essas qualidades são
inábeis; essas qualidades são culpáveis; essas qualidades são criticáveis pelos
sábios; essas qualidades quando postas em prática conduzem ao mal e ao
sofrimento’ - então vocês devem abandoná-las…
"Quando vocês souberem por vocês mesmos que,
‘Essas qualidades são hábeis; essas qualidades são isentas de culpa; essas
qualidades são elogiadas pelos sábios; essas qualidades quando postas em prática
conduzem ao bem e à felicidade’ - então vocês devem penetrar e permanecer
nelas."