quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Sutra da Total Aniquilação do Dharma Proferido pelo Buda

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Traduzido do sânscrito para o chinês por uma pessoa desconhecida.
Traduzido do chinês para o português pelo  Upasaka Pundarikakarna no verão de 2014.
Assim ouvi. Naquele momento o Buda estava em Kuśinagara e faltavam apenas três meses
para seu Parinirvāṇa. Junto com ele estavam monges e bodhisattvas. Muitos vieram até o local
onde o Buda estava e curvaram suas cabeças aos seus pés. Porém   o Honrado Pelo  Mundo
permaneceu imóvel, não proferiu nenhum ensinamento e sua radiância luminosa não mais era
emitida.
O Venerável Ānanda então curvou-se em reverência e dirigiu-se ao Buda dizendo, "Honrado
Pelo Mundo, antes e depois de ensinar o Dharma uma poderosa ema nação luminosa era
sempre vista, mas agora a Grande Assembleia não mais vê tal manifestação. Por que isso
acontece? Deve haver uma razão!"
O Buda, porém, permaneceu em silêncio. Apenas após ser questionado pela terceira vez o
Buda dirigiu-se a Ānanda [e disse], "Após o meu nirvāṇa, chegará o tempo em que o Dharma
será aniquilado e extinto. As Cinco Faltas Mortais
1
tornarão o mundo turvo
2
e o Reino de Māra
prosperará. Demônios se tornarão monges para deteriorar meu caminho e torná -lo confuso.
[Esses  monges]   serão apegados a roupas comuns e vão deleitar -se com kaṣāyas de cinco
cores.
3
Eles beberão álcool e comerão carne, tirando vidas pela ganância de seu sabor. Neles
não haverá [verdadeira] compaixão e serão odiosos e invejosos uns com os outros. Contudo,
naquele tempo também haverá bodhisattvas, praticantes solitários e arhats que se esforçarão
no cultivo de méritos, em tudo sendo respeitosos e pacientes e as pessoas que se submeterem
à disciplina serão guiadas [por eles] sem distinção. Terão piedade dos men os favorecidos e se
lembrarão dos mais velhos, ajudando a erguer os que sofrem de suas adversidades. Eles
sempre orientarão as pessoas a honrarem os sutras e as imagens. Farão votos de gerar méritos
de virtude e bondade. Não causarão dano aos seres humanos , renunciando a si próprios em
prol dos outros seres vivos. Não serão orgulhosos nem pouparão esforços sendo pacientes e
gentis, agindo assim com todas as pessoas.
1
pañcānantarya; 五無間業  As cinco  faltas mortais, parricídio, matricídio, assassinar um arhat, derramar
o sangue de um Buda, destruir a harmonia da sangha.
2
濁世  Mundo poeirento ou lamacento. Numa referência a impossibilidade de se enxergar a realidade.
Uma imagem interessante do mundo fenomênico coberto de uma camada de pó ou sujeira , assim não
se  vê  suas  verdadeiras  características.  A  poeira  é  a  ganância,  o desejo descontrolado, a futil idade,
falsidade, fraqueza ética e moral  que deixa tudo desagradável e impossível de definir.
3
O número cinco simbolicamente passa por  várias ideias e conceitos. Aqui, baseado nas regras budistas,
os monges eram proibidos de usar vestes que fossem tingida s com as cinco cores primárias (na cultura
local): azul, vermelho, branco, amarelo, preto.
[1119a05]
"Mas os monges servos de Māra, cheios de inveja, arquitetarão maldades para cal uniá-los,
expulsando-os de onde estiverem, não permitindo que fiquem em um único lugar. Nenhum
desses monges vai dar seguimento às práticas das virtudes budistas. Os templos budistas serão
como mausoléus
4
abandonados e nunca mais se recuperarão dos danos s ofridos. Somente
preocupados em acumular bens e posses, [esses monges] não incentivarão a prática de atos
meritórios.  Negociarão  bens,  terão  escravos  e  serviçais  que  lhes  cultivarão  os  campos,
[garantindo-lhes o sustento sem esforço]. Vão atear fogo nas mo ntanhas e florestas
5
ferindo
os seres vivos, sendo completamente desprovidos de compaixão. Seus escravos serão aqueles
que querem se tornar monges e suas serviçais serão aquelas que querem ser monjas. Não
cultivando  as  virtudes  budistas,  serão  depravados  e   indisciplinados, não distinguindo os
homens das mulheres
6
. Dessa maneira farão com que o Budismo se torne inconsistente e
insípido para todos [que queiram aprender].
[1119a10]
Alguns, para evitar a condenação de alguém, o farão tornar-se monge. Vão se considerar
Śrāvakas, mas sem praticar a disciplina e as regras da moralidade. A cada período lunar eles
repetirão os votos dos Preceitos, mas vão agir com indolência e não desejarão ouvir o Dharma.
Eles vão omitir partes dos sutras, desconsiderando aqui e al i, não querendo ensinar o texto
inteiro, nem terão o hábito de recitar os sutras. Ainda assim, mesmo que alguém os leia, nem
sequer uma palavra ou frase será entendida. Haverá aqueles de palavras fortes e consistentes,
mas [os monges de Māra] não consultarão os mais esclarecidos por serem orgulhosos e só
buscarem fama [ao invés do Dharma]. Não serão objetivos [em suas falas], mas terão trejeitos
suaves e elegantes, pois querem ser homenageados e receber oferendas.
[1119a15]
Quando chegarem ao fim de suas vidas, os monges servos de Māra afundarão no Inferno Avici
por terem cometido as Cinco Faltas Mortais, renascerão como Fantasmas Famintos e Animais
sofrendo tudo que causaram por uma quantidade de kalpas iguais  a  quantidade de grãos de
areia do Ganges. E no  dia em que suas faltas se esgotarem eles renascerão em terras distantes
onde os Três Tesouros não existam.
[1119a17]
Quando  cessar  o  desejo  pelo  Dharma,  as  mulheres  farão esforços constantes para gerar
méritos
7
, mas os homens serão indolentes e não dando   ouvidos ao Dharma. Vão considerar os
monges como a escória do mundo e serão incapazes de ter uma mente capaz de confiar.
4
O caractere usado aqui é o mesmo usado para descrever as tumbas imperiais onde os servos eram
enterrados vivos junto com seus senhores. Ou seja, o Budismo estaria  morto e enterrado e seus servos,
os monges malignos  e falsos estariam “sepultados” junto com seu mestre.
5
Achei curioso lembrar que as montanhas e florestas eram os locais onde ficavam os mosteiros.  Vão
prejudicar a capacidade de monges sinceros se agruparem, assim causando dano aos seres sencientes.
6
As mulheres ficavam separadas dos homens nos mosteiros.  Também havia regras diferenciadas no
trato entre homens e mulheres para os monges.
7
Seduzidas   pelo  ar  de  misticismo  do  falso  budismo,  elas  se  interessarão  mais  do  que  os homens.
Considerava -se o sexo feminino mais s uscetível a esse tipo de engodo enquanto o sexo masculino seria
mais voltado à lógica e racionalidade.
[1119a19]
Quando o desejo pelo Dharma declinar chegará o momento em que todos os Reinos Celestiais
chorarão.  O  período  das  secas
8
será  descontrolado  e  os  Cinco  Tipos  de  Grãos
9
não
amadurecerão. Vapores mortíferos se espalharão [pelo ar] causando a morte de muitos. As
pessoas comuns sofrerão duras punições sob o jugo dos governantes, que se oporão aos
princípios do Caminho. Todos pensarão   apenas em prazeres e distrações. As pessoas más
serão  tantas  quanto  as  areias  do  oceano.  Em  compensação,  as  pessoas  boas  serão
extremamente escassas, talvez uma ou duas.
[1119a23]
Quando esse kalpa estiver se exaurindo, os dias e noites serão mais curtos   e a vida passará
cada vez mais depressa. Aos quarenta os cabelos já serão brancos. Os homens serão devassos
e sua energia vital vai se exaurir muito cedo, viverão no máximo até aos sessenta. Os homens
viverão menos, mas a vida das mulheres será mais longa . Mesmo que cheguem a setenta,
oitenta ou noventa, poucos chegarão aos cem anos de idade.
[1119a25]
Grandes inundações
10
acontecerão de repente e serão imprevisíveis. As pessoas do mundo não
terão mais um coração confiante e desejarão que a existência seja   permanente. Dentre os
seres sencientes não haverá mais diferença entre os de casta superior e inferior e todos se
afundarão sendo arrastados [pela inundação] e devorados por monstros aquáticos.
[1119a27]
Naquele tempo, embora existam bodhisattvas, praticantes solitários e arhats, os monges
servos de Māra vão expulsá- los e  persegui-los  não permitindo que participem das assembleias.
Por isso os três tipos de praticantes adentrarão às montanhas
11
cultivando práticas benéficas
em prol da humanidade. Autocontrolados, eles serão felizes e contentes e a duração de sua
vida será prolongada e os seres celestiais os guardarão e protegerão. Então o bodhisattva
Candraprabha
12
surgirá no mundo. Em sua companhia eles reerguerão o Budismo.
8
O Sutra do Lótus compara o Dharma com uma chuva que cai igualmente sobre todos.
9
Como dito acima, o número cinco, simbolicamente, permeia a literatura com vários sentidos. Como os
grãos são uma fonte de força e sustento, pode ser uma associação com os  五力  pañcabala, as cinco
forças, ou cinco poderes que são, confiança, zelo, memória (ou  lembrança), meditação e sabedoria.
10
O  mar,  grandes  águas  são  quase  sempre  símbolos  do  sofrimento  ou  confusão  mental,  medo  e
angústia.
11
Ou  seja,  solitários,  afastados  da  multidão  num  sentido  de  que  não  participariam  das  grandes
congregações.
12
Candraprabha Bodhisattva, ou Gakkō Bosatsu em japonês, Yuèguāng Pusa em chinês, Luz da Lua em
português,  é  um  personagem  que  também  é  visto  ao  lado  de  Nikkō  Bosatsu  (Luz  do  Sol) e servem o
Buda da Medicina.  O disco lunar que ele sustenta representa o conhecimento  penetrante e as  virtudes
do Buda e simboliza a aspiração à Iluminação.
[1119b02]
Após um período de ci nquenta e dois anos, o Śūraṃgama-sūtra
13
e o Pratyutpanna-samādhi
sūtra
14
serão os primeiros a desaparecer e em seguida são se poderá mais consultar as doze
divisões do cânone Budista, pois elas estarão completamente aniquiladas, nunca mais serão
vistas, nem  suas palavras lidas. [Neste momento, então] o manto monástico espontaneamente
se tornará branco.
15
[1119b04]
Quando meu Dharma cessar, será como uma lamparina cujo azeite está prestes a acabar. Sua
luz é mais e mais brilhante até que de repente é totalmen te  extinta. Assim também será a
aniquilação do meu ensino. Certamente, as dificuldades que virão serão incontáveis e se
perpetuarão por muitos incontáveis milhares  de anos.
[1119b07]
Maitreya então descerá no mundo como um Buda. Os vapores venenosos [de o utrora] serão
extintos e o mundo será próspero e pacífico. A chuva cairá suave fazendo os Cinco Tipos de
Grãos crescerem exuberantes. As florestas crescerão novamente. Os seres humanos terão a
altura de oito pés e a vida de todos vai durar oitenta e quatro   mil anos. A quantidade de seres
sencientes salvos será incalculável. ”
[1119b10]
O Venerável Ananda fez uma reverência e dirigiu-se ao Buda dizendo, "Qual deve ser o nome
deste sutra para que seja respeitosamente mantido na memória?"
O Buda então respondeu, "Ānanda, ele deve ser chamado de 'Sutra da Total Aniquilação do
Dharma' e deve ser ensinado a todos e seu verdadeiro significado deve ser bem esclarecido.
[Sua correta compreensão] vai gerar méritos incalculáveis."
Os quatro tipos de discípulos  ouviram esse sutra com tristeza e desgosto e todos despertaram
a aspiração pela Suprema e Excelsa Iluminação. Todos eles curvaram -se em reverência ao Buda
e deixaram o local.
Este é o Sutra da Total Aniquilação do Dharma Proferido pelo Buda.
13
O Śūraṅgama Sūtra discute os conceitos de Yogācāra, Tathāgatagarbha e Budismo Esotérico. Faz uso
de lógica budista, com seus métodos de silogismo e Negação Quádrupla (sct. catu ṣ koṭi), popularizada
por Nāgārjuna. É um sutra Mahāyāna especialmente influente na escola Ch'an.
14
O Pratyutpanna Samādhi Sūtra contém a primeira menção conhecida ao Buda Amitabha e sua Terra
Pura,  sendo  dito  que  é  a  origem das práticas da Terra Pura na China. É um   sutra Mahāyāna inicial,
provavelmente escrito por volta do século I AEC na área de Gandhara, noroeste da Índia.
15
Branco era a cor  das vestes dos seguidores leigos. Ou seja, na ausência de verdadeiros monges, só
haverá seguidores leigos e eles tomarão a frente.

terça-feira, 6 de setembro de 2016

MENTE ÚNICA: consciência-apenas

texto compilado por Karma Tenpa Dharguye

Todos os Budas e todos os seres comuns nada mais são do que a mente única. A mente é sem início e sem fim, não-nascida e indestrutível. Não tem cor nem forma, não existe nem não-existe, não é velha nem nova, longa ou curta, grande ou pequena, já que ela transcende todas as medidas, limites, nomes e comparações. É o que vocês vêm diante de vocês.Comecem a pensar sobre isso e imediatamente estarão errados. É como um vazio ilimitado, que não pode ser sondado ou medido. A mente única é o Buda, e não há distinção entre o Buda e os seres comuns, exceto pelo fato de que os seres comuns estão apegados às formas, e assim procuram pela natureza búdica como se ela estivesse fora deles mesmos. Por causa desta procura, eles não reconhecem a natureza búdica, já que eles estão usando o Buda para procurar o Buda, usando a mente para procurar a mente. Mesmo que continuem por um milhão de éons, nunca serão capazes de encontrá-la. Não sabem que o que todos eles têm de fazer é colocar um fim ao pensamento conceitual, e então o Buda aparecerá diante deles, pois esta mente é o Buda e o Buda são todos os seres sencientes. Não é menos para os seres manifestos nas coisas comuns, nem mais para os seres manifestos nos Budas.

Esta mente pura, que é a fonte de todas as coisas, brilha eternamente com a radiação de sua própria perfeição. Mas a maioria das pessoas não está consciente disso e pensa que a mente é apenas a faculdade que vê, ouve, sente e conhece. Cegos pela suas próprias visões, audições, sentimentos e conhecimentos, eles não percebem a radiação da fonte. Se pudessem eliminar todo pensamento conceitual, esta fonte apareceria como o sol, brilhando no céu vazio e iluminando todo o universo.Portanto vocês, estudantes do caminho, que procuram compreender através da visão, da audição, do sentimento e do conhecimento: quando suas percepções são cortadas, seu caminho para a Mente será cortado e vocês não encontrarão qualquer lugar para entrar. Apenas realizem que, apesar da Mente se manifestar nestas percepções, ela não é parte delas, nem está separada delas. Vocês não devem tentar analisar estas percepções, nem pensar sobre elas; vocês não devem procurar a Mente única fora delas. Não se prendam às percepções, nem as deixem para trás; não permaneça nelas, nem as rejeitem. Acima, abaixo e em todos os lugares ao redor de vocês, todas as coisas aparecem espontaneamente, pois não há qualquer coisa que esteja fora da mente do Buda.

Huang-po Hsi-yun (?-849)
Stephen Mitchell, The Enlightened Mind A MENTE NATURAL

Falamos de "verdadeira natureza" porque ninguém a criou.

Uma das primeiras coisas que aprendi como budista foi que a natureza fundamental da mente é tão ampla que transcende completamente a compreensão intelectual. Ela não pode ser descrita em palavras ou reduzida a conceitos. Para alguém como eu, que gosta de palavras e sente-se muito confortável com explicações conceituais, isso era um problema.Em sânscrito, a língua na qual os ensinamentos de Buda foram originalmente registrados, a natureza fundamental da mente é chamada de tathagatagarbha, uma descrição muito sutil e aberta a diferentes interpretações. Literalmente significa "a natureza daqueles que foram naquela direção" são as pessoas que realizaram a completa iluminação - em outras palavras, as pessoas cujas mentes suplantaram completamente as limitações comuns que podem ser descritas em palavras. Acho que você concordaria comigo no sentido que essa definição não ajuda muito.

Outras traduções menos literais utilizam termos como "natureza búdica", "verdadeira natureza", "essência iluminada", "mente comum" e até "mente natural" para descrever o tathagatagarbha, mas nenhum deles lança muita luz sobre o verdadeiro significado da palavra. Para efetivamente entender o tathagatagarbha, você precisa vivenciá-lo diretamente, o que, para a maioria de nós, ocorre, em primeiro lugar, na forma de vislumbres rápidos e espontâneos. Quando, finalmente, vivenciei meu primeiro vislumbre, percebi que tudo o que os textos budistas falam a respeito é verdade.Para a maioria de nós, nossa mente ou natureza búdica é obscurecida pela auto-imagem limitada criada por padrões neuronais habituais - que, por si, são o reflexo da capacidade ilimitada da mente de criar qualquer condição que ela escolha, uma pepita de ouro coberta de lama e sujeira. A mente natural é capaz de produzir qualquer coisa, até mesmo a ignorância de sua própria natureza. Em outras palavras, não reconhecer a mente natural é um exemplo da capacidade ilimitada da mente de criar o que ela quiser. Sempre que sentimos medo, tristeza, inveja, desejo ou qualquer outra emoção que contribua para o nosso senso de vulnerabilidade ou fraqueza, deveríamos dar um bom tapinha em nossas costas. Acabamos de vivenciar a natureza ilimitada da mente.

Apesar da verdadeira natureza da mente não poder ser descrita diretamente, isso não significa que não deveríamos ao menos tentar desenvolver algum conhecimento teórico sobre ela. Mesmo um entendimento limitado é pelo menos uma placa apontando para o caminho na direção da experiência direta. O Buda entendia que as experiências impossíveis de serem descritas em palavras poderiam ser mais bem explicadas por meio de histórias e metáforas. Em um texto, ele comparava o tathagatagarbha, a uma pepita de ouro coberta por lama e sujeira. Imagine que você esteja em uma caça ao tesouro. Um dia, você vê um pedaço de metal no chão. Você cava um grande buraco, retira o metal, leva-o para casa e começa a limpa-lo. No começo, uma parte da pepita se revela, brilhante e cintilante. Aos poucos, a medida que você limpa a sujeira e a lama acumulada, a pepita inteira se revela como ouro. Agora, pergunto: o que é mais valioso - a pepita de ouro enterrada na lama ou a que você limpou? Na verdade, o valor é o mesmo. Qualquer diferença entre a pepita suja e a limpa é superficial.

O mesmo pode ser dito da mente natural. Na verdade, a fofoca neuronal que o impede de ver sua mente na totalidade não altera a natureza fundamental de sua mente. Pensamentos como "Eu sou feio", "Eu sou um idiota" ou "Eu sou um chato" não são nada mais do que uma espécie de lama biológica, temporariamente obscurecendo as brilhantes qualidades da natureza búdica ou mente natural.

Algumas vezes o Buda comparava a mente natural ao espaço, não necessariamente como o espaço é entendido pela ciência moderna, mas sim no sentido poético da experiência profunda de abertura que se sente ao olhar para um céu sem nuvens ou entrar em uma ampla sala. Como o espaço, a mente natural não depende de causas ou condições previas. Ela simplesmente é: incomensurável e além da caracterização, o pano de fundo essencial por meio do qual nos movimentamos e relativo ao qual reconhecemos distinções entre os objetos que percebemos.

ALÉM DA MENTE, ALÉM DO CÉREBRO

"Quando a mente é percebida, isso é o Buda".The Wisdom of the Passing Moment Sutra - traduzido para o inglês por Elizabeth M. CallahanVocê não é a pessoa limitada e ansiosa que pensa ser. Qualquer professor budista treinado pode dizer com toda a convicção da experiência pessoal que, na verdade, você é o centro da compaixão, completamente consciente e plenamente capaz de atingir o bem maior, não apenas para si mesmo, mas para todos e tudo o que possa imaginar.

O problema é que você não reconhece essa capacidade em si mesmo. Em termos estritamente científicos passei a compreender pelas conversas com especialistas da Europa e da America do Norte, que a maioria das pessoas acredita que a imagem de si mesmas formada pelo hábito e neuronalmente construída representa quem e o que elas são. E essa imagem é quase sempre expressa em termos dualistas: o "eu" e o "outro", dor e prazer, ter e não ter, atração e repulsa. Como me foi explicado, esses são os termos mais básicos da sobrevivência.

Infelizmente, quando a mente é submetida ao filtro dessa perspectiva dualista, cada experiência - mesmo em momentos de alegria e felicidade - é restrita por algum senso de limitação. Há sempre um mas espreitando ao fundo. Um tipo de mas é o mas da diferença. "Ah, minha festa de aniversário estava maravilhosa, mas eu preferiria um bolo de chocolate a um de coco". Há também o mas do "melhor": "Adoro a minha nova casa, mas a casa do meu amigo é maior e mais bem iluminada". E, finalmente há o mas do medo: "Não suporto mais o meu trabalho, mas na situação atual do mercado, como encontraria um novo emprego?". A experiência pessoal me ensinou que é possível superar qualquer senso de limitação pessoal. Caso contrário, eu provavelmente ainda estaria sentado em meu quarto no retiro, sentindo-me amedrontado e inadequado demais para participar das atividades em grupo. Como menino de 13 anos eu só sabia como superar meu medo e insegurança. Por meio da orientação paciente de especialistas na área da psicologia e neurociência, como Francisco Varela, Richard Davidson, Don Goleman e Tara Bennett-Goleman, comecei a reconhecer por que, de um ponto de vista objetivamente cientifico, as práticas de fato funcionam: que os sentimento de limitação, ansiedade, medo e assim por diante são somente parte de uma fofoca neuronal. Eles são, em essência, hábitos. E hábitos podem ser mudados.

Yongey Mingyur Rinpoche
Retirado do livro: "A Alegria de viver"