quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Aprendendo com o Therīgāthā: O que libertou a venerável monja Uttamā








Com esse texto mais uma vez venho insistir na prática budista mais essencial de todo momento, a qual também praticamos mais intensamente no momento que sentamos em meditação. Essa pratica é a do largar, soltar, como Buda diz, abandonando; é a pratica do desapego, ou não-apego que significa estar presente e solto, desapegado, sem apego.

Também novamente venho alertar aos praticantes que o Buda não combate essencialmente o desejo como se tem pensado devido a traduções ainda não bem elaboradas, mas sim o que seria mais propriamente traduzido do pali como desejo-apego, já bem comum em várias traduções, que é o desejo sedento, o desejo egoísta. Por outro lado há desejos bons como os desejos que combatem os estados prejudiciais falados em alguns suttas, o desejo de praticar e de se libertar, o desejo de beneficiar os seres, etc..

Se Buda combatesse todo desejo, que dizer do desejo de atingir a iluminação para o bem de todos os seres? Que dizer do desejo de libertação? Que dizer do desejo que o outro seja feliz (metta – amorosidade); do desejo de libertar o outro do sofrimento (karuna – compaixão); do desejo de conhecer, entender e praticar o dhamma – o ensinamento do Buda; do desejo de experimentar os cinco treinamentos; do desejo de se engajar no treinamento do caminho óctuplo; do desejo de aprender a meditar? Enfim, que dizer do desejo que moveu Siddhattha, desejo de acabar com o sofrimento?

Não somos iluminados, até o dia da iluminação haverá desejo, somos movidos por nossas motivações pessoais, entre elas estão os desejos e há desejos bons e ruins, benéficos e prejudiciais, que cooperam no caminho da libertação e que nos afastam dele. Temos diante de nós a cada instante a escolha de qual caminho seguir. E isto é de nossa inteira responsabilidade. Que caminho eu quero seguir? Onde quero chegar? Fazendo isso aonde chegarei? Qual será o resultado? São indagações com as quais sempre temos que nos defrontar. Devemos combater a cada passo o que está mais próximo de nossas possibilidades reais, apontados pelo Buda de forma específica, as causas de nosso desejo-apego, de nosso egoísmo, egocentrismo e delusão: dúvida, superstição, crença num eu permanente; má-vontade, cobiça, aversão...

Mas para saber agir corretamente diante dos desejos precisamos saber o que é ele, qual o desejo prejudicial ou que trás consequências ruis e qual o seu contrário. Então primeiro precisamos entender bem o tipo de desejo que é sempre prejudicial, o que é apontado como a causa do sofrimento que é o desejo-apego. O desejo-apego é o desejo de agarrar, o desejo de segurar e a sustentação da ideia de que pode ou que está agarrado e segurando; quando na verdade se tenta agarrar e segurar o que é impermanente, insatisfatório e insubstancial. Isto gera o sofrimento, pois tudo que se tenta agarrar, tudo a que se tenha apego possui essas três características, impermanência, insatisfatoriedade e insubstancialidade. Mecanicamente nos agarraremos ainda, não é fácil, mas precisamos ser atentos e decididos, perceber o que está acontecendo e soltar, abandonar, desgarrar. Não há nada que se possa realmente agarrar.

Esse apego, não tem nada a ver com amor, compaixão, bondade ou amizade; ele é sempre egoísta, por mais que isso se oculte de nós (mas a prática nos mostrará), pois ele se traduz em posse e emoções aflitivas (dúvida, superstição, crença num eu permanente e imutável que foi ferido, preguiça, torpor, má-vontade, aferro, cobiça, luxúria, raiva, ódio, dor, irritação etc.) produtos da ignorância básica, raiz de tudo: a ilusão de que há um eu, um meu, e ou um meu eu; quando não é possível nem pode ser possível nem há de modo algum algo em nós que possa ser chamado de um eu permanente e imutável, nem nada que possamos ter permanentemente, imutavelmente e sempre nos satisfaça, nem algo que possamos chamar de meu ou de meu eu. Tudo é condicionado, dependente de causas e condições, mutável, impermanente...

A única esperança de imutabilidade, satisfatoriedade permanente, imortalidade é aquilo que não é não é sujeito a nenhuma condição, que não depende de qualquer causa ou condição, o incondicionado, não nascido, não gerado, não devenido, Nibbana. Buda caracteriza esse estado como além da percepção e da não percepção, um extremo prazer invariável ou extrema felicidade, a verdadeira felicidade.

Mas o tipo de desejo em questão, o apego, não devemos ter nem sequer pela meta da libertação, Nibbana, nem por nenhuma meta ou etapa ou resultado do nobre caminho. O apego, ou desejo-apego, pode por vezes nos dá prazer, alegria ou felicidade, mas isso é fugaz, transitório e seguido de sentimentos opostos a esses, amargura, tristeza, tédio, insatisfação. O desejo-apego é prejudicial, trás resultados insatisfatórios e nos afasta da libertação. Ele nos aferra aos grilhões e alimenta nossas ilusões e nos mantem prisioneiro a elas, a visões errôneas, irreais, enganosas...

Como se verá o texto aborda outros temas importantes, como a perspectiva histórica e monástica do Therigatha e de como a autora pensa que devemos encarar o estudo desse texto; os escritos da monja Uttama; os agregados; as bases dos sentidos; e os elementos. Em tudo subjaz a prática do modo correto de ver e de treinar a mente em ser desgarrada e livre dos obstáculos. Quero compartilhar os benefícios que esses ensinamentos trazem aos praticantes e o que destaquei que pode servir como uma revisão em leituras posteriores para mim e se puder servir para você também e para outros com quem se queira compartilhar.

 Aqui no texto a seguir temos nas palavras do Buda a definição e caracterização do sofrimento e sua causa. E nas palavras de monjas e estudiosas praticantes temos o meio exato de lidar com a causa e atingir gradualmente a libertação. A sabedoria do therigata, livro das primeiras monjas budistas nos trás com uma fantástica objetividade e proximidade de forma prática e com relatos da experiência dessas monjas um meio hábil e fácil com o qual podemos sempre contar e progredir em nossa caminhada, tornando nossas vidas mais livres, cheias de significado, feliz e harmoniosa. É um texto que pode servir muito bem como uma introdução ao Therigatha, que deve ser sempre relido e relembrado, suas palavras devem ser trazidas à reflexão e postas em prática. A experiência dos resultados dessa prática é libertadora.

 

Aprendendo com o Therīgāthā:

O que libertou a venerável monja Uttamā
Por Nona (Sarana) Olivia
 
O THERĪGĀTHĀ tem  ganho uma  popularidade  crescente  nos  últimos  anos.  O  livro  de Susan
Murcott, “As  Primeiras  Mulheres  Buddhistas:  Poemas  e  Histórias  do  Despertar”  (The  First
Buddhist  Women:  Poems  and  Stories  of  Awakening)  tornou  os  versos  das  monjas  anciãs
prontamente  disponíveis  para  o  mercado  popular,  coincidindo  com  o  crescente  interesse  no
papel  das  mulheres  no  Buddhismo. Com  a  recente  controvérsia  em  torno  da  ordenação  de
mulheres, muitos se voltam para os versos dessas monjas (bhikkhunis), como uma prova de sua
existência prévia.
Como os historiadores dos textos escritos por mulheres há muito tempo têm apontado, algumas
vezes, os leitores se  tornam  tão focados no fato de que um autor de um  texto antigo é do sexo
feminino  que  perdem  de  vista  o  conteúdo  do  texto.  Compreensivelmente,  os  leitores
contemporâneos  do Therīgāthā abordam  estes  poemas  como  exemplos  de  uma  voz  feminina
perdida    muito  tempo.  Sem  dúvida,  a escassez  de  textos  antigos  escritos  por  mulheres  pode
dar  a  impressão  de  que  as  mulheres  não  compunham,  mas  o  fato  de  que  o Therīgāthā foi  o
primeiro  e por  muito  tempo  um texto  oral  é  uma  evidência  do  contrário. Assim  como  Rita
Gross  aponta  em  sua  obra  fundamental, “Buddhismo  depois  do  Patriarcado”(Buddhism  after
Patriarchy):
O  Buddhismo indiano  antigo  também  preservou,  apesar  da
prática  principal  de  manter  registros  androcêntricos,  um
documento notável, que pode registrar mais das mulheres, de um
período antigo,  do  que  qualquer  outro  conjunto  de  literatura
religiosa. Este documento é, sem dúvida, o Therīgāthā. Aqui está
um claro, inequívoco e simples relato, de  mulheres com elevadas
realizações  espirituais,  do  que  o  Buddhismo  significava  para
elas, da liberdade e alegria que elas finalmente encontraram em
sua prática(51).
Nós  somos,  de  fato,  afortunados  por  quaisquer  textos  compostos  pelas  mulheres  antigas  que
foram  preservados. No  entanto,  não  devemos  deixar  que  a  nossa  gratidão  por  essas  vozes
femininas  nos  leve  a  projetar  os  nossos  valores  anacronicamente  e  observar  apenas  a  sua
“feminilidade”.  A fim  de  entender  a  vida  dessas  mulheres  que  viviam  na  Índia  antiga,  é
necessário  ler  o Therīgāthā dentro  de seus  contextos  culturais  e  históricos.  Não  fazê-lo  é uma
injustiça para com os poemas dessas discípulas.
  também  uma  tendência  de  se  aproximar  dos  versos  do Therīgāthā como  evidência  daquilo
que  alguns se  referem  como “o  feminino”,  um  termo  quase-Jungiano  popularizado  no  começo
da segunda onda do feminismo. No entanto, as mulheres, como muitas mulheres de outras raças
ou de ascendência não europeias alientaram, a noção de um “feminino”essencial ingenuamente
assume  as  normas  culturais,  raciais  e de  classe que  excluem  as  vozes daqueles que  não  possuem
estas  qualidades  culturalmente  idealizadas.  Não    um “feminino” universal.  Enquanto que  os
órgãos  sexuais  são  anatomicamente  iguais,  muito  do  que  consideramos  como  as  normas  de
gênero  são na  verdade  construções sociais inscritas  por  uma  cultura  individual.  Para  emprestar
do sutta  Mahāyāna Vimalakirtinirdesa,  Sariputta  pergunta  a  uma deidade feminina:  “Por  que
você não muda o seu sexo feminino?” A deidade responde:
“Estive  aqui  por  doze  anos  e  tendo  inspecionado  as  características
inatas  do  sexo  feminino  não  fui  capaz  de  encontrá-las”. (citado  em
“Buddhismo Depois do Patriarcado”)
Sugiro  que  não  leiamos  o Therīgāthā primeiramente  como  um  relato  histórico  da  vida  dessas
mulheres do 6º século a.C.; não é a sua feminilidade que essas mulheres antigas querem enfatizar
em seus poemas. O ponto de sua prática buddhista não era o de reificar qualquer condição,  mas
estarem libertas do apego. Sem apego, uma pessoa pode se tornar mais independente daquilo que
é  culturalmente  considerado  normativo  ou  ideal.  Ao  reconhecer  uma  verdade  mais  profunda,
cada  pessoa  pode  ser  ele  ou  ela  mesma,  sem  necessidade  de  estar  em  conformidade  com  as
normas  culturais de gênero. Mais  importante  ainda,  esses  versos  enfatizam o  Ensinamento  do
Buddha  no  cânone pāli,  e  de  forma  extraordinariamente  poderosa  deixam claro  que  essas
mulheres  receberam,  praticaram,  se  libertaram por  meio  deles e  ensinaram  os  mesmos
ensinamentos que recebemos hoje.
Essas monjas  viveram  na  mesma  época do  Buddha  histórico.  Em  alguns  dos  versos,  elas
descrevem suas vidas pré-monásticas como esposas, mães, filhas, concubinas e prostitutas. Esses
instantâneos nos permitem um breve olhar para o pano de fundo e o sofrimento que atraiu essas
mulheres  para  o  Dhamma.  Independentemente  do  nosso  gênero,  podemos  nos  identificar  com
essas mulheres, como quando Vasitthī escreve sobre sua tristeza pela morte de seu filho: “Aflita
pelo  meu  filho,  totalmente  louca,  fora  de  meus  sentidos” (133).  Reconhecemos  a  vaidade  da
juventude  neste  verso  de  Vimalā: “Jovem,  intoxicada  pela  minha  adorável pele,  pela  minha
imagem, pela  minha beleza e fama, eu desprezava outras mulheres”(72). Em contraste, sobre
o  envelhecimento,  Ambāpāli escreve:  “Formalmente  meu  corpo  parecia  belo,  como  uma
folha  bem  polida  de  ouro;  agora  é  coberto  com  rugas  muito  finas” (266). E,  claro,  muitos
praticantes  simpatizam  com  a  bhikkhuni  anônima,  que  escreveu: “Faz  25  anos  desde  que
abandonei a vida em família e segui a vida santa. Nem mesmo pela duração de um estalar de
dedos eu  alcancei  o  aquietamento  da  mente” (67).  No  entanto,  esses versos são apenas  parte
de  suas  histórias,    que  cada uma continua  contando  sobre  as  práticas  que  as  levaram  à
libertação do sofrimento.
Existem  73  poemas  reunidos  no Therīgāthā,  cada um  de  ou sobre uma  monja  diferente. Neste
breve  ensaio,  vamos  nos  concentrar  em  uma  dessas  antigas  monjas  que  nos    um  vislumbre
sobre quais dos ensinamentos do Buddha as monjas ensinavam umas às outras.

Uttamā

De  acordo com  a  tradução  feita  por Carolyn Rhys Davids das biografias comentariais,  o  pai da
monja Uttamā era  o  tesoureiro  de Savatthi; dessa  forma,  podemos  supor  que  ela  veio  de  uma
família abastada. Durante sua adolescência, ela ouviu ensinamentos dados pela monja  Patacara,
que inspirou Uttamāa se ordenar na Sangha do Buddha. No entanto ela era incapaz de progredir
em suas meditações, então ela se aproximou de Patacara  para  obter  ajuda. Na estrofe seguinte,
Uttamā descreve  os  ensinamentos que ela  recebeu de  Patacara,  e  nos diz que ela  praticou esses
ensinamentos e se libertou.

Versos de Uttamā

Quatro a cada cinco vezes em  que eu saía do  meu quarto, eu não
tinha obtido a paz  mental. Eu não tinha nenhum controle sobre a
minha  mente. Eu fui  a  uma  monja  em  quem  eu  confiava.  Ela  me
ensinou  o  Dhamma,  os  agregados,  as seis bases dos sentidos e  os
elementos (khandhāyatanadhātuyo). Eu ouvi seus ensinamentos e,
em seguida, sentei com as pernas cruzadas por sete dias, entregues
à  alegria  e  felicidade.  No  oitavo  dia  estiquei  meus  pés,  tendo
penetrado a ilusão do eu (tamokkhandha  padāliyā).
Parece  que  Uttamā tinha se ordenado  e  estava  meditando,  mas  sem  sucesso. Ela  não  estava
chegando a lugar  nenhum. Ela  teve uma  conversa  com uma  monja  mais sênior do que ela, que
lhe deu instruções clássicas do Buddha. Uttamā praticou de forma diligente, não se movendo por
sete  dias  (uma  fórmula  clássica  para uma duração  de  tempo). No  oitavo  dia,  ela  estava
iluminada.
Os  ensinamentos  clássicos  sobre  os  agregados,  as  seis  bases  dos  sentidos  e  os  elementos
(khandhāyatanadhātuyo),  que Uttamā praticou  ainda  são  relevantes  nos  dias  de  hoje. No
entanto, uma vez que eles se referem a conceitos desconhecidos para a maioria dos Ocidentais,
se  quisermos  entender  como  eles  são  libertadores  é  importante  compreender  como  eles  são
entendidos no Buddhismo.
Fundamental  para  aquilo  que  aprendemos  praticando  com  esses  três  tópicos  da  vigilância - os
agregados, as bases dos sentidos, e os elementos - são as lições sobre sofrimento, impermanência
e  não-eu. Ou  seja,  praticando  com  esses  três  conceitos  nós  somos  capazes  de  ver  onde  nos
apegamos e de [que] colhermos os frutos do desapego.

Os Agregados (Khandha)

A  primeira  desta  longa  palavra  composta  utilizada  por Uttamā, khandhāyatanadhātuyo,  é  o
termo pāli khandhas,  uma  palavra  que  significa  literalmente  “amontoado” ou  “grupo”.  Por
todo  o  Therīgāthā lemos  muitas  estrofes comoventes  em  que  as  monjas  se  libertam  após
aprenderem sobre os khandas -os cinco agregados do apego.
Em seu primeiro discurso, o Dhammacakkappavattana Sutta, conhecido como “Colocando em
Movimento  a  Roda  do  Dhamma”,  o  Buddha  diz  aos  seus  discípulos  que  ele  despertou  para  a
causa de todo sofrimento: os agregados do apego.
Nascimento  é  sofrimento,  envelhecimento  é  sofrimento, doença é
sofrimento,  morte  é  sofrimento; pesar,  lamento,  dor,  tristeza  e
desespero são sofrimento; a união com  aquilo que é desprazeroso é
sofrimento; a separação  daquilo que é prazeroso é sofrimento; não
obter o  que se  deseja é sofrimento;  em resumo,  os cinco  agregados
influenciados pelo apego são sofrimento”(SN 56.11).
Os  agregados  do  apego  descrevem  as  formas  psicofísicas  como  sentimos,  percebemos  e
construímos  nossos mundos.  Muitas vezes  os  ouvimos  como  definidos  na  língua pāli,  os  cinco
khandhas,  que  incluem  rūpa (forma  material), vedanā (sensação), saññā (percepção),
sakhāra (formações  mentais), viññā a (consciência),  e  o  Buddha  ensinou que  o  sofrimento
surge  quando  nos  identificamos  e  nos  agarramos  a  qualquer  um  destes  cinco. Quando  nos
apegamos aos khandhas, construímos uma identidade vinculada ao passado, projetada no futuro,
e apegada ao presente.
Assim  como  as  monjas  do Therīgāthā foram  ensinadas  por  companheiras  de  caminho  (“uma
monja  em  quem  eu  confiava”),  temos  a  boa  fortuna  de  ter  mulheres  experientes  de  quem
aprender. A  Upasika  Kee  Nanayon,  considerada  por  muitos  como  a  principal  mestra  do  sexo
feminino  na  Thailândia,  nos  instrui  sobre  os  agregados  em  sua  palestra  do  Dhamma  de  1970,
“Treinamento para a Libertação” (Training for Liberation):
Quando  entendemos  isso  surgindo  e  cessando - nos  voltando  para
examinar  as  condições dentro  de  nós  mesmos - vamos  perceber  que
não    nada  bom  ou  ruim. É  apenas  um  processo  natural  de
surgimento,  persistência  e  cessação.  Tente  penetrar  e  ver  isso.  A
purificação  regular  da  mente  destacará  qualquer  impureza,  tal  como
uma  sujeira  em  um  quarto  limpo.  A  cada  momento  você  deve
abandonar  qualquer  apego.  O  que  quer  que  surja,  persista  e,  em
seguida, cesse - não se segure ou se agarre nisso! Tome este princípio
de “não desejar, de não agarrar” profundamente no  coração, e assim
a  mente  estará  tranquila  e  livre. Essa  é  uma realização  valiosa. Isso
não envolve um amplo conhecimento - nós apenas penetramos para
ver  a  impermanência  da  forma  material,  das  sensações,  das
percepções,  dos  condicionamentos  [formações  mentais],  das
consciências”.
(www.accesstoinsight.org,  daqui  por  diante,  referido  como  ATI:
http://www.accesstoinsight.org/lib/thai/kee/directions.html#chb6).
A  bem  conhecida  monja  alemã,  Ayya  Khema,  aborda  o  sofrimento  causado  pelo  apego  aos
khandhas em  sua  palestra  do  Dhamma  em  1994,  “Meditando  sobre  Não-Eu” (Meditating  on
Not-Self):
“Tome  separadamente  os  quatro khandas que  compõem  a  mente.
Quando  nós  o  fazemos,  enquanto  isso  está  acontecendo - não  agora
em  que  vocês  estão  apenas  pensando  sobre  isso - mas  enquanto  isso
está acontecendo -então temos um pressentimento de que isso não é
realmente ‘eu’,  que  esses  são  fenômenos  que  estão  surgindo,  que
permanecem  um  momento  e  depois  cessam.  Quanto  tempo  a
consciência  mental  fica  em  um  objeto?  E  quanto  tempo  duram  os
pensamentos?  Nós  realmente  os  convidamos?”
(ATI:http://www.accesstoinsight.org/lib/authors/khema/bl095.html).

As Bases dos Sentidos (āyatana)

A segunda prática que a monja ensinou para Uttamāfoi a vigilância aos sentidos. É através dos
seis  sentidos  que  conhecemos  o  mundo.  Isso  inclui  os  cinco  sentidos  que  conhecemos
comumente,  com  a  adição  da  mente.  As  portas  dos  sentidos,  os  objetos dos  sentidos  e  as
consciências  estão  incluídos  no  conceito buddhista  dos  sentidos  como  um  local  de  apego. Em
“Desperto e Consciente”(Awake and Aware), Ayya Khema nos ensina:
Nosso  ser  interior se  manifesta  através  das  sensações,  que  surge
através  dos  nossos  contatos  sensoriais. Pensar  também  é  um  contato
sensorial.  Pensamentos  não  saudáveis  produzem sensações
desagradáveis tais como ansiedade ou infelicidade. Ver, ouvir, saborear,
tocar,  cheirar  são  os  cinco  sentidos  exteriores.  Pensar  é  o  sentido
interno.  Todos eles geram contato e produzem sensações. Há o olho e
o  objeto  visual. Quando  ambos  estão  presentes  em  boas  condições,  a
consciência  visual  surge  e  isso  resulta  na  visão. A  base  do  sentido,  o
objeto  sensorial  e  a  consciência  sensorial  se  encontram.  Quando
sabemos como esse ser, que chamamos de “eu”, opera, podemos parar
sua  saída  impressa  pré-programada,  que  está  sempre  respondendo  da
mesma  maneira”.
(ATI:http://www.accesstoinsight.org/lib/authors/khema/herenow.html#
ch3).
Observando  cuidadosamente  as  portas  dos  sentidos  entrando  em  contato  com  os  objetos  dos sentidos,  percebemos  como  nos  enredamos  no  ciclo  da  origem  dependente.  Em  seu  ensaio
“Investigação  para  o  Insight”(Investigation  for  Insight),  a  praticante  de vipassana Susan
Elbaum  Jootla  nos  ajuda  a  entender  como  nós,  assim  como Uttamā,  podemos  aplicar  uma
investigação  sobre  os  seis  sentidos  em  nossa  prática  diária. Ela  inclui  uma  citação  do  Buddha
quando ela escreve:
“Assim,  cada consciência é uma  consciência  visual, uma  consciência
auditiva,  uma  consciência  olfativa,  uma  consciência  gustativa,
consciência  tátil  ou  consciência  mental,  dependendo  de  qual  é  o
órgão  dos sentidos  no  instante  em  que  ele  encontra  o  seu  objeto.  O
ciclo de causalidade continua a partir daí: ‘Tendo o olho e os objetos
visuais como condição, surge a consciência visual. O encontro desses
três  é  o  contato.  Tendo  o  contato  como  condição surge a sensação.
Tendo  a  sensação  como  condição,  surge  o  desejo,  o  apego,  o  vir-aser.  Tendo  o  vir-a-ser  como  condição,  surge  o  renascimento,
envelhecimento, morte, o pesar, o lamento... Esse é o surgimento do
mundo’ (SN  12.2). Através  dessa  análise  da  gênese  da  existência  (o
“mundo”)  e  de  dukkha (assim  como  é  formulado  mais
frequentemente)  nós  podemos  entender  a  natureza absolutamente
impessoal do surgimento da consciência, bem como o papel germinal
na  criação  de sakhāras [formações  mentais]  desempenhado  pelas
bases  dos  sentidos  internas  e  externas” (ATI:
http://www.accesstoinsight.org/lib/authors/jootla/wheel301.html).

Os Elementos ( Dhātu)

Finalmente,  naquela  longa  palavra  composta  que Uttamā usa  para  descrever  o  que  lhe  foi
ensinado,  nós  chegamos à  palavra  para  elementos - dhātu. Alguns de nós já  ouvimos discursos
sobre os quatro elementos: terra, água, fogo e ar, e fácil entender que o nosso mundo é criado
por  esses  elementos.  Em “A  Mente  Meditativa”(The  Meditative  Mind),  Ayya  Khema  nos
instrui a notar que:
“Podemos  usar  a  vigilância  para  observar  que  tudo  na  existência
consiste de quatro  elementos:  terra,  fogo,  água, ar;  e  então  verificar
qual é a diferença  entre  nós  mesmos e  tudo  mais.  Quando levamos  a
prática  a  sério  e  olhamos  toda  a  vida  de  tal  maneira,  então
encontramos a verdade em  todo nosso entorno bem como dentro de
nós.  Nada  mais  existe (Nalanda:
http://nalanda.org.br/meditacao/mente-meditativa).
A  erudita  em pāli,  Lily  Silva,  ilustra  o  ponto de que  os  elementos  em  si  são  condições  que
surgem  de  condições.  Em  seu  artigo  de  1987: “A  Atitude  Buddhista  em  Relação  à  Natureza”
(The Buddhist Attitude Towards Nature), ela escreve:
Apesar  de  usarmos  um  substantivo  chamado “chuva”,  que  parece
denotar uma “coisa”,  a  chuva  não  é  nada além do  processo de gotas
de  água  caindo  do  céu. Fora  esse  processo,  a  atividade de “chover”,
não    nenhuma  chuva  que  poderia  ser  expressa  por  um  conceito
nominal  aparentemente  estático. Os  próprios  elementos  de  solidez
(pathavī),  liquidez  (āpo),  calor  (tejo)  e  mobilidade  (vāyo),
reconhecidos como  o  material  de  construção  da  natureza,  são  todos
fenômenos  em  constante  mudança.  Mesmo  as  montanhas  que
parecem  ser  mais  sólidas  e  a  própria  Terra  que  sustenta  tudo  não
escapam  desta  lei  inexorável  da  mudança”.
(ATI: http://www.accesstoinsight.org/lib/authors/desilva/attitude.html).
[Obs.: os elementos de solidez (pathavī), liquidez (āpo), calor (tejo) e mobilidade (vāyo) são os mesmos chamados comumente terra, agua, fogo e ar respectivamente.]
A  partir  desses  poucos  exemplos,  podemos  ter  uma  noção  das  possibilidades  de  prática  com
esses objetos de meditação: os agregados, as bases dos sentidos e os quatro elementos materiais.
Na  verdade,  esses  objetos  de  meditação  são  maneiras  de  conceitualizar  os  processos  que
constituem  um  ser  humano.  Enquanto  que  eles,  por vezes,  são  ensinados  como  práticas
separadas,  classicamente  eles  trabalham  juntos,  ou  talvez  seja  melhor  dizer  que  eles  são
processos  sobrepostos. Por  exemplo,  no Sa myutta  Nikāya,  a bhikkhuni  Vajirā,  se  descreve
como um “amontoado de meras formações” e explica com o símile da carroça:
Para u m certo conjunto de componentes,
usa-se a palavra ‘carroça’.
Da mesma forma, para os agregados
há a convenção de u m ‘ser’.” (I.553)
Além de estudar os agregados que formam a “convenção conhecida como um ser”, nós podemos
dissecar o símile de Vajirā acrescentando que só podemos experimentar o nosso “ser” através da
inter-relação dos quatro elementos materiais, bem como  no local das seis portas dos sentidos e
seu  contato  com  o  mundo  externo.  Embora  esses  três  possam  nos ajudar  a  entender  o
ensinamento  do  Buddha  sobre  origem  dependente,  para  os  propósitos  desse  breve  ensaio,  é
suficiente  apontar  que  qualquer  objeto  de  meditação  que  um  praticante  use,  o  objetivo  é  o
insight libertador de que todas as coisas surgem de condições, são impermanentes, insatisfatórias
e não-eu.
A prática e o objetivo da prática de Uttamā podem ser os mesmos para nós nos dias de hoje. Da
mesma  forma,  os  ensinamentos  e  ferramentas  dados  pelo  Buddha  para  as  monjas  foram
transmitidos  através  dos  tempos  para  os  nossos  professores,  que  continuam a  oferecê-los no
mundo de hoje. Assim como Uttamā aprendeu e aplicou o que ela aprendeu com uma professora
em  quem  ela  confiava,  nós  também  nos  beneficiaremos  seguindo  o  seu  exemplo  de  ouvir  e
praticar.
O Therīgāthā fornece um instantâneo nas vidas dessas monjas antigas e fala sobre sua devoção à
prática. Suas histórias de libertação podem ser inspiradoras para nós nos dias de hoje, tanto para
leigos como ordenados, tanto para homens como para mulheres.

TrabalhosCitados

  GROSS,  Rita  M.. “Buddhism  After  Patriarchy:  A  Feminist  History,  Analysis  and
Reconstruction of Buddhism”. SUNY, 1993
  Access To Insight (ATI): www.accesstoinsight.org
  Centro de Estudos Buddhistas Nalanda: http://nalanda.org.br
NONA OLIVIA é uma estudante do  Buddhismo e praticante de  meditação há  muitas décadas.
Ela tem doutorado pela Brown University e leciona na Universidade do Colorado em Boulder.
Sua área de especialização é o papel das mulheres nas antigas tradições religiosas.