Alexander Berzin, 2002
Primeira Parte: Perguntas e
Dúvidas Fundamentais Sobre o Tantra
2 A Autenticidade dos Tantras
A prática tântrica requer a convicção da autenticidade dos tantras, a
compreensão correta dos seus métodos e teoria e a certeza da sua validade como
processos conducentes à iluminação. De acordo com a tradição tibetana, a fonte
dos tantras é o próprio Buda Shakyamuni. Contudo, muitos eruditos ocidentais e
budistas disputaram essa questão. No entanto, segundo padrões científicos
ocidentais, nenhum dos textos atribuídos ao Buda – nem sutras nem tantras –
pode passar o teste de autenticidade. A questão é se isto é crucial aos
praticantes do tantra ou outros critérios são para eles mais relevantes.
Os tibetanos explicam que o Buda Shakyamuni ensinou três veículos ou
caminhos de prática que conduzem aos objetivos espirituais mais elevados. O
veículo modesto (pequeno veículo), Hinayana, conduz à liberação,
enquanto que o grande veículo, Mahayana, conduz à iluminação. Embora Hinayana
seja um termo pejorativo que aparece apenas em textos Mahayana, nós iremos aqui
usá-lo sem quaisquer conotações negativas como termo geral amplamente
reconhecido para as dezoito escolas budistas pré-Mahayana. Tantrayana, o
veículo do tantra – também chamado Vajrayana, o veículo
forte-como-um-diamante (veículo do diamante) – é uma subdivisão do Mahayana. O
Hinayana transmite apenas os sutras, enquanto que o Mahayana transmite tanto os
sutras como os tantras.
Ninguém registou os discursos ou diálogos instrutivos do Buda quando ele
os deu há dois mil e quinhentos anos, dado que o costume indiano desse tempo
limitava o uso da escrita às transações comerciais e militares. No entanto, no
ano seguinte ao falecimento do Buda, quinhentos dos seus seguidores reuniram-se
em conselho no qual três dos seus principais discípulos recitaram partes
diferentes das suas palavras. Subsequentemente, diferentes grupos de monges
tomaram a responsabilidade de memorizar e de periodicamente recitar seções específicas
delas. A responsabilidade passou de uma geração de discípulos para a seguinte.
Essas palavras tornaram-se os sutras Hinayana. A reinvindicação à sua
autenticidade fica exclusivamente na crença de que os três discípulos originais
tinham uma perfeita recordação e de que todos aqueles que no conselho
confirmaram as suas narrativas se lembravam das mesmas palavras. Estas duas
condições são impossíveis de se estabelecer cientificamente.
Mesmo se a transmissão original estivesse livre de corrupção, muitos
discípulos proeminentes em gerações subsequentes não tinham memórias perfeitas.
Cem anos depois do falecimento do Buda surgiram conflitos de opiniões sobre
muitos dos sutras Hinayana. Em consequência disso emergiram dezoito escolas,
cada uma com a sua própria versão daquilo que o Buda disse. As escolas até
discordaram sobre o número de discursos e diálogos do Buda que foram recitados
no primeiro conselho. De acordo com algumas versões, vários discípulos do Buda
não tiveram possibilidade de estar presentes e transmitiram por via oral
exclusivamente aos seus próprios estudantes os ensinamentos de que se
lembravam. Os exemplos mais proeminentes dizem respeito aos textos relativos
aos tópicos especiais de conhecimento (sânsc. abhidharma). Durante
muitos anos, as gerações subsequentes recitaram-nos fora das reuniões
oficialmente sancionadas e apenas mais tarde alguns conselhos adicionaram-nas à
coleção Hinayana.
As primeiras escrituras apareceram por escrito quatro séculos depois de
Buda, em meados do primeiro século A.C. Eles eram os sutras Hinayana da escola Theravada,
a linha dos idosos. Gradualmente, os sutras das outras dezassete escolas
Hinayana também emergiram em forma escrita. Embora a versão Theravada fosse a
primeira a aparecer em escrito e embora Theravada seja a única escola Hinayana
que hoje sobrevive intacta, estes dois fatos são inconclusivos quanto à prova
de que os sutras Theravada são as autênticas palavras do Buda.
Os sutras Theravada estão em língua Pali, enquanto que as outras
dezassete versões estão em várias línguas indianas, tais como sânscrito e o
dialeto local de Magadha, a região onde o Buda viveu. Contudo, não se pode
estabelecer que Shakyamuni ensinou em apenas uma ou em todos estes idiomas
indianos. Assim, nenhuma versão dos sutras Hinayana pode pretender a
autênticidade com base na língua.
Além disso, o Buda aconselhou os seus discípulos a transmitirem os seus
ensinamentos em quaisquer formas compreensíveis. Ele não queria que os seus
seguidores congelassem as suas palavras numa língua sagrada arcaica como aquela
das escrituras indianas antigas, os Vedas. Consistente com esta
recomendação, diferentes partes de ensinamentos Hinayana do Buda apareceram
primeiro por escrito em várias línguas indianas e em estilos de composição e de
gramática dissimilares para se adequarem à época. Os sutras e os tantras
Mahayana também exibem uma grande diversidade de estilo e línguagem. De um
ponto de vista budista tradicional, a diversidade da línguagem prova mais a
autênticidade do que a refuta.
De acordo com a tradição tibetana, antes dos ensinamentos do Buda terem
sido postos em escrita, os discípulos recitavam os sutras Hinayana abertamente
em grandes congregações monásticas; os sutras Mahayana em grupos pequenos e
privados e os tantras em extremo segredo. Os sutras Mahayana apareceram
primeiro nos inícios do século II D.C., e os tantras começaram talvez a emergir
tão cedo quanto um século depois, embora seja impossível qualquer datação
precisa. Como notámos acima, de acordo com várias tradições Hinayana, círculos
privados até transmitiram oralmente alguns dos mais famosos textos Hinayana
antes das principais assembleias monásticas as terem integrado no conjunto do
que recitavam abertamente. Portanto, a ausência de um texto na agenda do
primeiro conselho não refuta a sua autênticidade.
Além disso, os participantes das sessões de recitação do tantra juraram
votos de silêncio para não revelar os tantras aos não iniciados. Portanto, não
é de surpreender que os relatos pessoais das reuniões do tantra não tenham
aparecido. Assim, é difícil provar ou refutar a transmissão pré-escrita dos
tantras e a ocorrência das reuniões secretas. E mais, mesmo se aceitarmos a
transmissão oral pré-escrita dos tantras, é impossível estabelecer como e
quando tal transmissão começou, como é o caso com as escrituras Hinayana
ausentes no primeiro conselho.
Como argumentou o mestre indiano Shantideva, em Engajando no
Comportamento do Bodhisattva (sânsc. Bodhicharyavatara), qualquer
linha de raciocínio apresentada para provar ou desacreditar a autênticidade dos
textos Mahayana aplica-se igualmente às escrituras Hinayana. Consequentemente,
a autênticidade dos tantras deve apoiar-se em outros critérios que não os
fatores linguísticos e a data da escrita inicial.