segunda-feira, 16 de setembro de 2013

RENASCIMENTO


Levou muito tempo para eu entender o renascimento como ensinado pelo Buda e a diferença entre este conceito e o de reencarnação. De modo que o que posso falar sobre minha experiência nesse entendimento é que ele como todos os outros, e como tudo, vai mudando ao longo de nossa experiência, mas chegando a uma resposta mais e mais clara. Seria ótimo ter paciência e persistir no estudo, na prática e na medição em vez de querer respostas rápidas, mas sei que isso talvez seja humanamente impossível, por isso gostaria de compartilhar um pouco do que pude entender na esperança de poder ajudar àqueles que, como eu já estive antes, se encontram ansiosos por compreender ao menos intelectualmente ou racionalmente esse difícil conceito.

Em primeiro lugar quero ressaltar que o que eu penso ou outras pessoas inclusive mestres do budismo devem ser totalmente filtrados e deixados de lado se possível; e devemos nos ater apenas ao que foi dito pelo Buda e se encontra nos textos, para confirmar se essa forma de entender está ou não correta com base nisto.

Tomando esse cuidado aponto para uma circunstancia muitas vezes ignorada quando se trata do assunto: Buda diz claramente que há a retribuição aqui e em outros mundos e em outras vidas. Tomarei esse ponto primeiro e como o mais importante por alguns motivos, entre eles a fanática insistência de alguns na doutrina de anatta como uma doutrina de que não há um eu, quando Buda mesmo diz (veja no Majjhima Nikaya e no Digha nikaya) que isso é um erro. E a consequência dessa suposta doutrina do Buda para as outras vidas: se assim fosse esse conceito invalidaria a retribuição, seria semelhante ao que Buda aponta como niilismo, que diz não haver existência depois dessa vida nem retribuição.

Um problema é que as pessoas que se encontram há muitos anos no budismo se sentem tentadas a dar respostas simples mesmo quando nem elas mesmas entenderam ainda a complexidade que envolve o conceito de renascimento, que remete ao segundo ponto: os dozes elos da originação interdependente, outro caso bem difícil de entender e de explicar. Digo isso não devido a acreditar que eu possua o entendimento correto e completo, mas por esse primeiro erro e esse segundo esquecimento me parecerem estar na base de toda incompreensão acerca do renascimento.

Não me alongarei aqui em explicar esses conceitos que devem ser buscados nos suttas, apenas os colocarei em relação. Se há a retribuição não faz sentido alguém pagar a retribuição de outro, certo? Se a continuidade é de outro, não teria porque nos preocupar com a retribuição e essa seria a natureza injusta e problemática da existência. Esses símiles didáticos que dividem o ser em partes para explicar aquela que transmigra geralmente vão cair por terra já aqui. Buda apresenta os agregados, mas ele não diz que nós somos eles. Então essa tristeza no olhar, de se sentir como agregado iludido, não passa de mais uma ilusão. O erro é precisamente identificar-se com qualquer uma dessas partes, ou constituintes, ou agregados, ou a mente, etc. O erro está em pensar em um si mesmo separado do resto das pessoas, das consciências, do universo (ou por outro lado identificar-se com essas coisas, acreditando que é tudo ou que é o universo). É justamente esse o eu que não existe. Mas existe o eu aqui agora, o fluxo de nossas experiências, pode ser o kamma (com certeza ele está aqui agora): há lembranças (reais ou não), há a impressão (não importa se seja realidade ou ilusória) de uma continuidade.

Mas, amigos, não há de fato essa continuidade de lembranças, de consciência, de personalidade. Há uma sequencia de ínfimos instantes consciência em que cada um herda, toma para si o conteúdo do anterior, ou pelo menos grande parte dele. Estamos morrendo de fato aqui agora, essa é a doutrina de anatta (estou consciente que recorri a ideias do vissuddhimaga e do abidhamma para conceber isso e não só das palavras do Buda, mas parto da suposição de que essas exatamente são uma boa explicação daquelas): não há continuidade alguma de coisa nenhuma, nenhum fenômeno, não há alma, substância, essência nem em nós nem nas coisas, não há um eu permanente, imutável. Da mesma forma continuará depois da morte e ao renascermos, por isso se fala em retribuição, em ir para outros mundos, em iluminação, se não fosse assim essas coisas seriam sem sentido. Fala-se em renascer numa terra pura como se fala em ir embora para outro país, não é tão diferente. Ou estaríamos plantando para outro colher e outro desfrutar? Obviamente que não, Buda ensina que colheremos o que plantarmos não que outra personalidade ou outra mente ou outro ser colherá.

Nós atribuímos arbitrariamente a certo conjunto de fenômenos uma pessoalidade, personalidade, identificação com esse fluxo. Quando as causas e condições estiverem presentes este fenômeno ressurgirá. Esse processo está descrito nos doze elos. O apego à existência como tal é justamente o que nos faz retornar. É preciso lembrar bem, isso está explicado quando se fala da originação interdependente.

Portanto não há alma que transmigra, pois de fato não há alma alguma, nem sequer agora. Não existe ego, espírito, essência, self. Não é só depois da morte, exatamente agora isso também não existem. Existe uma impressão de que exista, uma atribuição que colocamos sobre certos fenômenos (que nem são os mesmos para todo mundo) e de que exista a continuidade de alguém, características pessoais, emoções, etc. como é agora, e assim continuará. O que continua não pode ser diferente do que é agora, cada ínfimo instante é consequência de seu anterior e assim será depois da morte e do renascimento. O renascer é justamente a reunião das condições anteriores, consequência do que foi o instante anterior. Diz-se que há a lembrança após a morte de tudo, mas não após o renascimento, a morte seria como uma continuidade e o renascimento um reinício.

É nisso que consiste de fato a dúvida de quem pergunta de fora, pois não conhece os conceitos budistas; pensa ter um eu contínuo e que tem prova disso a todo instante, pensa que está consciente a cada instante e que distingue sem dúvida o que é real do que é ilusão. O budismo antes faz perder essas falsas certezas, surge então o segundo perguntador, “se não isso, então o que?”; é aqui que temos que parar com as bobagens e historinhas despreocupadas porque para quem pergunta é algo muito sério e embora Buda tenha recomendado arrancar a flecha primeiro, quem somos nós para poder dizer para alguém tal coisa? Para sermos realmente dignos deveríamos antes por em prática metta e karuna e compreender a aflição do outro. Isto é o sofrimento, e sua origem é o apego, mas o apego a uma coisa que não existe. Acredito que em vez de tratarmos os outros como tolos deveríamos nos esforçar para mostra-los que já estão livres desse peso e como morremos já quando vamos dormir e mesmo a cada respiração e renascemos a cada dia e a cada instante e como colhemos as consequências dos nossos atos e de como cultivamos nossa mente e o que plantamos em nossa consciência.

O fluxo da ilusão continua aqui agora de instante a instante e do mesmo modo continuará. O eu que supomos ser agora, embora a cada ínfimo instante de consciência já seja outro sem que percebamos, pensará o mesmo de si mesmo como continuidade, exatamente como pensamos ser a mesma pessoa do início dessa frase. Não há com o que se preocupar se você entende os doze elos.

Mas tendência que temos de separar o si mesmo do resto dos fenômenos não só é arbitrária como nos leva ao erro de identificarmo-nos com alguma parte do que somos chamávamos nós. O meu caso pode ser um bom exemplo: identificava-me a princípio com a consciência, “eu não sou o corpo, eu não sou a mente, eu não sou a personalidade, mas a consciência”, mas aí você medita e medita, vasculha essa consciência e vai encontrando várias coisas nela, e tudo que você encontra são fenômenos, são conteúdos. A consciência mesma é vazia como um espelho, tudo que pensava ser eu então é igual em qualquer pessoa, em qualquer ser sensciente, automaticamente estava salvo! Mas essa era só mais uma de minhas ilusões... Buda fala que “há um incondicionado, e se não houvesse um incondicionado de fato não haveria esperança para o que é condicionado”. Como hoje deposito toda minha confiança nesse professor e tenho sido abençoado pelos magníficos benefícios de seu ensinamento, posso apostar que através da disciplina, da atenção constante e da meditação qualquer pessoa dedicada poderá descobrir em si mesmo o que é incondicionado, o que escapa ao ciclo de dor, sofrimento e morte e que contém toda a sabedoria...

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