Levou muito tempo para eu
entender o renascimento como ensinado pelo Buda e a diferença entre este
conceito e o de reencarnação. De modo que o que posso falar sobre minha experiência
nesse entendimento é que ele como todos os outros, e como tudo, vai mudando ao
longo de nossa experiência, mas chegando a uma resposta mais e mais clara. Seria
ótimo ter paciência e persistir no estudo, na prática e na medição em vez de
querer respostas rápidas, mas sei que isso talvez seja humanamente impossível,
por isso gostaria de compartilhar um pouco do que pude entender na esperança de
poder ajudar àqueles que, como eu já estive antes, se encontram ansiosos por
compreender ao menos intelectualmente ou racionalmente esse difícil conceito.
Em primeiro lugar quero
ressaltar que o que eu penso ou outras pessoas inclusive mestres do budismo
devem ser totalmente filtrados e deixados de lado se possível; e devemos nos
ater apenas ao que foi dito pelo Buda e se encontra nos textos, para confirmar
se essa forma de entender está ou não correta com base nisto.
Tomando esse cuidado aponto
para uma circunstancia muitas vezes ignorada quando se trata do assunto: Buda
diz claramente que há a retribuição aqui e em outros mundos e em outras vidas. Tomarei
esse ponto primeiro e como o mais importante por alguns motivos, entre eles a fanática
insistência de alguns na doutrina de anatta como uma doutrina de que não há um
eu, quando Buda mesmo diz (veja no Majjhima Nikaya e no Digha nikaya) que isso
é um erro. E a consequência dessa suposta doutrina do Buda para as outras
vidas: se assim fosse esse conceito invalidaria a retribuição, seria semelhante
ao que Buda aponta como niilismo, que diz não haver existência depois dessa
vida nem retribuição.
Um problema é que as pessoas
que se encontram há muitos anos no budismo se sentem tentadas a dar respostas
simples mesmo quando nem elas mesmas entenderam ainda a complexidade que envolve
o conceito de renascimento, que remete ao segundo ponto: os dozes elos da
originação interdependente, outro caso bem difícil de entender e de explicar. Digo
isso não devido a acreditar que eu possua o entendimento correto e completo,
mas por esse primeiro erro e esse segundo esquecimento me parecerem estar na
base de toda incompreensão acerca do renascimento.
Não me alongarei aqui em
explicar esses conceitos que devem ser buscados nos suttas, apenas os colocarei
em relação. Se há a retribuição não faz sentido alguém pagar a retribuição de
outro, certo? Se a continuidade é de outro, não teria porque nos preocupar com
a retribuição e essa seria a natureza injusta e problemática da existência. Esses
símiles didáticos que dividem o ser em partes para explicar aquela que
transmigra geralmente vão cair por terra já aqui. Buda apresenta os agregados,
mas ele não diz que nós somos eles. Então essa tristeza no olhar, de se sentir
como agregado iludido, não passa de mais uma ilusão. O erro é precisamente
identificar-se com qualquer uma dessas partes, ou constituintes, ou agregados,
ou a mente, etc. O erro está em pensar em um si mesmo separado do resto das
pessoas, das consciências, do universo (ou por outro lado identificar-se com
essas coisas, acreditando que é tudo ou que é o universo). É justamente esse o
eu que não existe. Mas existe o eu aqui agora, o fluxo de nossas experiências,
pode ser o kamma (com certeza ele está aqui agora): há lembranças (reais ou não),
há a impressão (não importa se seja realidade ou ilusória) de uma continuidade.
Mas, amigos, não há de fato
essa continuidade de lembranças, de consciência, de personalidade. Há uma
sequencia de ínfimos instantes consciência em que cada um herda, toma para si o
conteúdo do anterior, ou pelo menos grande parte dele. Estamos morrendo de fato
aqui agora, essa é a doutrina de anatta (estou consciente que recorri a ideias
do vissuddhimaga e do abidhamma para conceber isso e não só das palavras do Buda,
mas parto da suposição de que essas exatamente são uma boa explicação daquelas):
não há continuidade alguma de coisa nenhuma, nenhum fenômeno, não há alma,
substância, essência nem em nós nem nas coisas, não há um eu permanente, imutável.
Da mesma forma continuará depois da morte e ao renascermos, por isso se fala em
retribuição, em ir para outros mundos, em iluminação, se não fosse assim essas
coisas seriam sem sentido. Fala-se em renascer numa terra pura como se fala em
ir embora para outro país, não é tão diferente. Ou estaríamos plantando para
outro colher e outro desfrutar? Obviamente que não, Buda ensina que colheremos
o que plantarmos não que outra personalidade ou outra mente ou outro ser
colherá.
Nós atribuímos arbitrariamente
a certo conjunto de fenômenos uma pessoalidade, personalidade, identificação
com esse fluxo. Quando as causas e condições estiverem presentes este fenômeno ressurgirá.
Esse processo está descrito nos doze elos. O apego à existência como tal é
justamente o que nos faz retornar. É preciso lembrar bem, isso está explicado
quando se fala da originação interdependente.
Portanto não há alma que transmigra,
pois de fato não há alma alguma, nem sequer agora. Não existe ego, espírito, essência,
self. Não é só depois da morte, exatamente agora isso também não existem. Existe
uma impressão de que exista, uma atribuição que colocamos sobre certos fenômenos
(que nem são os mesmos para todo mundo) e de que exista a continuidade de alguém,
características pessoais, emoções, etc. como é agora, e assim continuará. O que
continua não pode ser diferente do que é agora, cada ínfimo instante é consequência
de seu anterior e assim será depois da morte e do renascimento. O renascer é justamente
a reunião das condições anteriores, consequência do que foi o instante
anterior. Diz-se que há a lembrança após a morte de tudo, mas não após o renascimento,
a morte seria como uma continuidade e o renascimento um reinício.
É nisso que consiste de fato a
dúvida de quem pergunta de fora, pois não conhece os conceitos budistas; pensa
ter um eu contínuo e que tem prova disso a todo instante, pensa que está consciente
a cada instante e que distingue sem dúvida o que é real do que é ilusão. O budismo
antes faz perder essas falsas certezas, surge então o segundo perguntador, “se não
isso, então o que?”; é aqui que temos que parar com as bobagens e historinhas
despreocupadas porque para quem pergunta é algo muito sério e embora Buda tenha
recomendado arrancar a flecha primeiro, quem somos nós para poder dizer para alguém
tal coisa? Para sermos realmente dignos deveríamos antes por em prática metta e
karuna e compreender a aflição do outro. Isto é o sofrimento, e sua origem é o
apego, mas o apego a uma coisa que não existe. Acredito que em vez de tratarmos
os outros como tolos deveríamos nos esforçar para mostra-los que já estão livres
desse peso e como morremos já quando vamos dormir e mesmo a cada respiração e
renascemos a cada dia e a cada instante e como colhemos as consequências dos
nossos atos e de como cultivamos nossa mente e o que plantamos em nossa consciência.
O fluxo da ilusão continua
aqui agora de instante a instante e do mesmo modo continuará. O eu que supomos
ser agora, embora a cada ínfimo instante de consciência já seja outro sem que
percebamos, pensará o mesmo de si mesmo como continuidade, exatamente como
pensamos ser a mesma pessoa do início dessa frase. Não há com o que se
preocupar se você entende os doze elos.
Mas tendência que temos de
separar o si mesmo do resto dos fenômenos não só é arbitrária como nos leva ao
erro de identificarmo-nos com alguma parte do que somos chamávamos nós. O meu
caso pode ser um bom exemplo: identificava-me a princípio com a consciência, “eu
não sou o corpo, eu não sou a mente, eu não sou a personalidade, mas a consciência”,
mas aí você medita e medita, vasculha essa consciência e vai encontrando várias
coisas nela, e tudo que você encontra são fenômenos, são conteúdos. A consciência
mesma é vazia como um espelho, tudo que pensava ser eu então é igual em
qualquer pessoa, em qualquer ser sensciente, automaticamente estava salvo! Mas essa
era só mais uma de minhas ilusões... Buda fala que “há um incondicionado, e se
não houvesse um incondicionado de fato não haveria esperança para o que é
condicionado”. Como hoje deposito toda minha confiança nesse professor e tenho
sido abençoado pelos magníficos benefícios de seu ensinamento, posso apostar
que através da disciplina, da atenção constante e da meditação qualquer pessoa
dedicada poderá descobrir em si mesmo o que é incondicionado, o que escapa ao
ciclo de dor, sofrimento e morte e que contém toda a sabedoria...
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